sábado, 27 de fevereiro de 2016

Só metade de mim

Dói-me o olho esquerdo.
Dói-me o cotovelo esquerdo.
Dói-me o calcanhar esquerdo.
O olho esquerdo está levemente inchado.
O cotovelo esquerdo está levemente inchado.
O calcanhar esquerdo está levemente inchado.
Coço o olho esquerdo feito criança, não apóio o braço esquerdo em superfície alguma e manco pelas ruas.

Deve haver outro inchaço dentro de mim, também do lado esquerdo; mas esse não enxergo. Apenas sinto a dor. Deve ser um inchaço grande.




quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Por que não?



É porque a gente passa a acreditar em sinais depois que vê uma pessoa amada rígida dentro de um caixão, por mais sem sentido que esses sinais pareçam a outros olhos. Porque também não faz sentido um corpo que já foi de uma pessoa, ainda mais amada, ficar dentro de um caixão com seda, rendinhas, babadinhos, flores que começam a feder, algodão nas narinas. Depois tudo apodrece, contaminando as entranhas da terra. É tudo tão sem sentido que não vejo como loucura acreditar que ele, que tanto gostava do Men at Work, mande um sinal para mim por meio das ondas do rádio toda vez que toca Overkill ou Down Under no meu carro, só para me dizer que esses dias tão cinzentos passarão. 


I can’t get to sleep
I think about the implications
Of diving in too deep
And possibly the complications

Specially at night
I worry over situations
I know it'll be alright
Perhaps it's just imagination

Day after day it reappears
Night after night my heartbeat, shows the fear
Ghosts appear and fade away

Alone between the sheets
Only brings exasperation
It's time to walk the streets
Smell the desperation

But at least there are pretty lights
And though there's little variation
It nullifies the night
From overkill

Day after day it reappears
Night after night my heartbeat, shows the fear
Ghosts appear and fade away
Come back another day





terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Menu executivo

Almoço com ele à minha frente, na mesma mesa, almoço sozinha. Enquanto ele tem os olhos vidrados na tela do celular, engulo pedaços de um frango seco com brócolis murcho. Sinto meus pés formigarem, será um ataque de pânico, merda, na mesa central de um restaurante na hora do almoço? Reparo no executivo à mesa na minha frente, camisa e gravata, falando ao celular com uma cliente sobre tesouro, rendimento, PGBL, VGBL, porcentagens, o formigamento desaparece, vai ver era só carência. O sorriso do executivo é bonito, branco e aberto, mas não gostei do modo como segurou os talheres. Merda, por que preciso reparar em detalhes que não me farão feliz? Se ele fosse me comer, não seria com talheres mesmo. Ele me comeria sussurrando porcentagens na entrada e na saída, taxas de administração, tesouro nacional, lastro, come, baby, come? Mas não gostei do modo como segurou os talheres, sem refinamento, e isso é uma barreira intransponível. Então ele, que está e não está comigo, levanta os olhos da tela do celular. Me viu parada ouvindo a conversa alheia. Me olha com olhos de juiz. Me acha uma inútil que só serve para roubar as conversas dos outros. E o brócolis está, mesmo, murcho demais. 

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Amélia, rogai por nós

Ele pediu o carro dela emprestado. Ela emprestou. Ele tomou duas multas em uma semana. As notificações chegaram. Ela ia indicá-lo como o motorista responsável. Mas não tenho habilitação válida, ele a alertou. O que eu faço?, ela perguntou, se te indicar ainda tomo mais multas por ter emprestado o carro para quem não podia. Pare de arranjar problema, foi o conselho dele.

Ela ficou sem entender e pediu para ele passear com as crianças, no carro dele, de preferência, mesmo sem habilitação, ela também nunca foi habilitada para dirigir a educação de dois seres humanos e eles estavam ali, em torno dela, monopolizando a televisão, ela nunca mais viu um filme inteiro, nem mesmo no computador, pois é interrompida a cada dez minutos até desistir de vez, “foda-se, vamos ver Naruto” porque também não aguenta mais lutar, sozinha, contra três seres do sexo masculino para os quais o controle remoto é uma espécie de pau, mais importante que qualquer outro objeto, natural ou artificial, na face da Terra. E quem é que gosta tanto assim de pau, anyway? Mas eles foram, ela nem quis saber para onde, nem se foram de pijama, com os dentes sujos e os cabelos desgrenhados. O mundo vai continuar girando mesmo. E ela vai morrer e ninguém vai se lembrar dela mesmo.

Então nasceu o silêncio no apartamento. Ela tomou banho ouvindo música sem que qualquer ser masculino reclamasse do volume (e da música, claro; afinal, quem quer ouvir Nina Simone?), abriu uma garrafa de vinho, eram três da tarde, e daí?, deitou no sofá e colocou um filme, um clássico, em preto e branco, daqueles que os homens daquela casa reclamam. E quando a primeira imagem apareceu, a gata subiu em cima dela, não nas pernas, não na barriga, não nos braços. Na cabeça, no rosto, nos olhos. Ela colocava a gata no tapete e a bicha voltava a subir. Gata-desgraçada que não a deixava ver um filme, gata-alinhada-com-seus-filhos-dominadores-da-programação-da-televisão. Então fez o que faz de melhor desde que se conhece por gente: chorou. E a gata entendeu (a gata entendeu!) e aninhou-se aos pés dela. E ela conseguiu ver o filme, sentindo a alegria de uma pessoa que se sente dona do próprio nariz.

Ele e os filhos voltaram quando ela até se perguntava o que fazer naquela casa silenciosa, o que, claro, foi resolvido (como sempre, em qualquer lugar, em qualquer hora) com um livro. Dez páginas e eles estavam de volta. Queriam ver televisão. Precisa mudar o idioma do áudio, ela esclareceu, deixei no inglês porque vi um filme...eu vi um filme!

Ai, o menor irritou-se:  por que você arranja tanto problema? 


        

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Minhocão


É domingo. Vejo tudo mais próximo, desprotegida da lataria e dos vidros do carro, sem ar condicionado, sem notícias apocalípticas cuspidas pelos jornalistas, a passos rápidos que vão se tornando cada vez mais lentos para que eu não perca nenhum detalhe da senhora gorda e grisalha que se espreme na varanda repleta de plantas enquanto fuma um cigarro, dos parentes a rir em volta da mesa da sala de paredes cor de rosa, da mãe que passava roupa com a ajuda de cinco filhos, quer dizer, de três, porque um mal andava com a chupeta entre a boca e o nariz e uma seguia o irmãozinho que mal andava com a chupeta entre a boca e o nariz, do homem que bebia cerveja sentado na janela do seu quarto na pensão, enquanto olhava o colega jogando roupas numa mala, da mulher que resolveu esvaziar o guarda-roupa e espalhar todas as suas vestimentas pela cama e pelo chão, da criança que assistia a um desenho na tevê, do velho barrigudo que limpava parafusos, do casal que arrumava a cama, de tantos passarinhos na gaiola que parei de contá-los enquanto caminhava a passos lentos para não perder nenhum detalhe da vida exageradamente humana numa tarde de domingo.


quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Eu, ela e a lixa

Dia e noite. Todos os dias. Todas as noites. Todos os dias e todas as noites ela está aí. Todos os dias e todas as noites ela está aí nesse canteiro.  Todos os dias e todas as noites ela está aí nesse canteiro na porta de um banco. Já a vi dormindo. Já a vi comendo restos encontrados no lixo. Já a vi tomando água que caía no bueiro. Já a vi acariciando gatos e cachorros. Já a vi nua tomando banho de caneca. Já a vi cantando enquanto penteava os cabelos. Já a vi deitada debaixo de papelão. E hoje a vi assim, lixando os pés. Hoje a vi assim: lixando os pés. Lixando os pés. 



quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Cenas de um próximo capítulo que nunca passou

Eu e você deitados no sofá, lado a lado, quer dizer, eu com meio corpo sobre meio corpo seu, nossos pés entrelaçados, assistindo à novela das seis, gravada em uma praia dourada, o casal de protagonistas com músculos perfeitos, pele de bronze, dentes luminosos e cabelos sedosos, apesar do vento, do mar e do sol, e nós dois ali, enroscados, sorrindo, cochilando, colocando um pé por cima do outro e depois um outro por cima de um, como se mais nada houvesse no mundo além de nós, um sofá e uma novela das seis. 

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Não leia

Trinta e sete graus na mais fresca sombra. No café, poucas janelas e nenhum ar condicionado. Não há brisa. Na mesa ao lado, um homem com o peiot desgrenhado, chapéu preto de veludo, terno, gravata e capote pretos. Do seu rosto, só vejo o permitido pela barba, bigode e cabelo compridos. Da pele que parece nunca ter sido tocada pelo sol, só as mãos. No pouco que vejo, há suor e sebo. Com ele, dois bolivianos (ou peruanos ou chilenos ou mexicanos?) em camisas rotas e calças curtas que me deixam ver meias que não combinam com os sapatos, e um quarto (e último) homem gordo e careca. Está de costas para mim e isso é tudo que posso ver, além da pele suada debaixo da camisa clara. Tomam uma xícara de café atrás da outra, com pouca água nos intervalos, e nada comem. Não riem e mexem muito os olhos. Sobre o quê falam, não posso dizer, nada escuto. E sobre o quê falam é só o que me interessa. 

Em outras palavras: de nada serve tudo o que escrevi aqui. 

Eu avisei.