quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

O preço da beleza ou o infortúnio da maçã


Tudo começou quando alguém resolveu escrever que eu era o fruto proibido. Depois disso, passei a ser o principal símbolo da transgressão. Pobre de mim. Por que não a laranja, o abacaxi, a pêra? Pensando bem, nenhuma outra fruta é tão bela quanto eu. Minhas curvas são uniformes, minha cor já provoca salivação e, para piorar, ou melhorar, sou carnuda e molhada.

Não bastasse esse fardo, agora serei a narradora de uma história em que eu já aparecia sem me orgulhar, por conta justamente desse símbolo que me tornei. Novamente, pergunto: por que não escolheram uma borboleta, uma flor ou um dos veados da floresta para esse papel? Ou o guarda do castelo, que tudo vê? Sobrou para mim. Esse deve ser o preço que se paga por ser bela e desejada.

É o mesmo preço que essa pobre Branca de Neve vai pagar. Tão lindinha, com uma pele alva e uma boquinha que lembra a mim. Essa bruxa que está aqui me envenenando também é belíssima. Está certo que já é uma senhora, mas não deixa de ser linda: porte altivo, seios fartos e firmes, pele lisa. Mas não basta: ela não aguenta ver a juventude em outro corpo, vai matar a pequena Branca de Neve. E pior: vai me usar para isso.

Sinto uma dor profunda só de imaginar Branquinha de Neve me mordendo com apetite, depois de tanto tempo comendo aquela comida de anões que deve ser, além de pouca, insossa. A pequena nem pode imaginar que vai me comer e se envenenar. E eu não posso fazer nada para salvá-la. E se eu me jogasse das mãos dela e saísse rolando pelo chão? Essa bruxa viria atrás de mim, nunca vi alguém tão obstinada. Quiçá eu pudesse me atirar direto para a boca de um urso, ou de um coelho, pobrezinho. Antes eles do que a dócil Branca.  

Quisera Branca de Neve não fosse tão ingênua. O que eu poderia fazer para impedi-la de abrir a porta para essa malévola? Que infelicidade a minha. Ganho a narração da história, mas nenhum poder para mudá-la. Se ao invés de narradora eu ganhasse o papel de autora, Branca de Neve estaria mais esperta depois de morar com os anões, desmascaria a madrasta perante o reino e tomaria o poder, sem príncipe algum ao seu lado. E ainda entraria com uma reclamação trabalhista contra esses anões.

No entanto, como não recebi essa incumbência, resumo esse conto para dizer que Branca de Neve me comeu e foi dada como morta até que um príncipe encantado ressuscitou-a com um beijo.

Por conta desse final, as meninas passarão os séculos vindouros procurando príncipes e encontrando apenas homens, as mulheres maduras farão coisas inimagináveis em nome da juventude e da beleza e as madrastas serão sempre as vilãs da história. Algumas, inclusive, farão com que essa aqui pareça aprendiz.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

O dia em que meus pés fugiram de mim


Ouvi passos apressados e com a pouca luz que entrava no quarto àquela hora da manhã vi meus dois pés fugindo pela porta.

- Onde vocês pensam que vão?

- Embora, eles responderam sem me olhar.

- Vocês são MEUS pés, gritei numa tentativa fracassada de trazê-los de volta. Podiam ser rápidos mesmo sem o comando da minha cabeça.

Quis alcançá-los, mas não consegui me equilibrar sobre os tornozelos. Fiquei sentada na cama, olhando para aqueles dois caules ceifados. Como usarei os meus sapatos? E a tornozeleira de ouro que comprei na semana passada? E aquele kanji que eu sonhava tatuar no peito do pé direito? Quanto tempo ficarei aqui esperando?

O esmalte nas mãos agora não combinaria mais com o dos pés. Talvez meu marido achasse bom: não precisaria mais retorcer o nariz e a boca ao ver minhas unhas vermelhas e nem seria mais importunado para massageá-los antes de dormir.

Seria esse o motivo da fuga?

Passavam o dia apertados dentro de um salto quinze, com os dedos uns em cima dos outros, mas a dor era minha. O calo nos ossos sesamóides do pé esquerdo já não cabia nem mesmo numa sapatilha macia, mas eu insistia em escondê-lo no salto, não sem antes execrar sua existência. Cheguei até mesmo a lixá-lo com uma língua de pirarucu seca (conselho de um taxista), o que não me permitiu colocar qualquer sapato por uns três dias. Odiei-o ainda mais, parasita intruso indesejado.

À noite, já na cama, eu pedia uma massagem, rápida que fosse, mas diante do continuado enfado do meu marido, eu desisti. Pedi muito, pedi pouco, até que não pedi mais. Não tenho tamanho suficiente para enfrentar o egoísmo.  Nem paciência para lidar com pés que insistem em não aceitar sua função no corpo humano.

Agora meus pés fugiram. Ouvi a porta bater e umas risadas escancaradas na minha janela. Parece até que escutei um deles me chamando de otária, mas devo ter entendido errado. Ainda que eu conseguisse ficar em pé, não olharia pela janela para ver qual rumo tomaram. Que se percam! Que aprendam sozinhos. Têm a ilusão de que podem viver sós, mas depois de dois ou três quarteirões irão perceber que sem mim são apenas dois pés perdidos no meio de corpos inteiros. O deslumbramento da liberdade dura pouco. Sentirão falta do balanço dos meus quadris, da firmeza das minhas pernas, da retidão da minha coluna, da direção dos meus neurônios.

Pés bobos.

Enquanto isso eu espero com o lençol sobre as pernas. Em poucas horas poderei dar a eles a minha benevolência. Enquanto isso eu durmo um pouco mais e sonho com meus pés subservientes. Quando criança me equilibrava nos saltos da mamãe com meus pezinhos ainda sem calos. As primeiras dores vieram com a sapatilha de ponta, que também trouxeram os primeiros aplausos. Sempre achei que fossem para mim, mas eram meus pés que atravessavam o palco em passos miúdos, ligeiros e graciosos.

Em pouco tempo ouvirei o som do perdão ao invés de risadas. Enquanto isso eu descanso. Os pés não me deixavam parar. Até durante o sono se agitavam em sustos. Se as quatro patas do Napoleão não me fossem ofensivas nesse momento, eu o chamaria para um cafuné, mas não suportarei o barulhinho que fazem no assoalho como sapatos de salto. Não posso pensar em centopéias.

Enquanto não penso, eu espero.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Uno


O motoqueiro atravessou a frente do carro e foi ao chão no mesmo momento em que uma mulher entrava no supermercado com duas crianças pelas mãos no mesmo momento em que o policial apreendia pedras dos bolsos de um menino parado numa esquina no mesmo momento em que uma pessoa nascia no mesmo momento em que uma pessoa morria no mesmo momento em que um tiro era disparado contra um civil no mesmo momento em que uma mulher entrava numa banheira no mesmo momento em que um homem comprava lingerie para a amante no mesmo momento em que um trabalhador era despedido da empresa no mesmo momento em que um jovem arranjava seu primeiro emprego no mesmo momento em que uma criança se banhava num rio no mesmo momento em que um aluno aprendia matemática no mesmo momento em que um menino jogava futebol no mesmo momento em que três amigas entravam no cinema no mesmo momento em que o mundo começava no mesmo momento em que o mundo terminava.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

E daí?


A xícara e o pires tremiam na sua mão com as unhas vermelhas desgastadas. Tentou abrir o invólucro do saquinho de chá por um canto, depois pelo outro, pelo outro e pelo último possível. Tentou com os dentes uma vez. Só conseguiu na segunda. Colocou o saquinho na xícara e apertou a garrafa térmica errada: despejou café em vez de água quente. Ah, as lágrimas novamente: não. Não! Se estivesse em casa quebraria a xícara na parede e jogaria o café da garrafa no chão branco da cozinha, no lençol branco da cama, no tapete branco do banheiro, na cortina branca da sala, nessa vida branca que ela não sabia mais se quente ou gelada. Mas não estava em casa e enquanto esperava a consulta tomou o café com um saquinho de chá de camomila. Estava ruim. Mas, e daí?

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Morte


Um espasmo no útero anuncia minha morte. Tua língua despeja o veneno que me matará aos poucos. Um frêmito nas pernas começa a me transportar para fora de mim. E desse mundo. Mais um leve tremor no ventre e você, tão próximo, passa a ser apenas uma sombra. Meus olhos rodam como duas piorras, as mãos começam a pesar mais do que meu próprio corpo. Já não me pertenço.

Quero me agarrar a um fio de vida. Encontro teus cabelos negros e grossos. Quanto mais resisto mais você me envenena. Jogo meus calcanhares contra tuas costelas. Você continua firme no teu propósito. Desço as mãos até teus ombros e guardo um pouco da tua pele sob as minhas unhas. Meus dedos amolecem, morrerão antes de mim. Urro tão alto que ninguém me escuta.

Tua língua libera ainda mais veneno. Vibro enquanto você me devora. Quero fugir, tento mexer minhas pernas com a força que ainda me resta. É inútil lutar. Peço socorro em vão. Alcanço teu rosto, teu suor, teus braços, teus ombros, tuas costas, quero te levar comigo para o precipício em que você está prestes a me lançar. Procuro teus olhos em desespero, mas já não os encontro. Estou caindo. Ca...indo. Tento me apegar a algo de concreto que já não existe mais. Passei para outro estado: líquido ou gasoso? Não posso mais, não consigo fazer qualquer movimento, a não ser estremecer nesse gozo que me fará nascer mais uma vez.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Em nome do amor


Na noite do quadragésimo aniversário de casamento, ele chegou, como nos últimos quarenta anos, com quarenta rosas vermelhas nas mãos. Uma para cada ano ao seu lado. Alguns mais difíceis que outros, mas se me fosse dada a oportunidade de uma outra vida, eu poderia ser pintor, lixeiro, médico, motorista, empresário, poderia ou não ter filhos, poderia ou não viajar tanto como viajei, poderia não ter amigos, poderia até não ler os livros que li nessa vida, mas não ser o seu marido, isso não, isso eu não suportaria. E ela, como nos últimos quarenta anos, o abraçou e o beijou e o chamou de meu querido e colocou as quarenta rosas vermelhas no mais belo vaso que havia na casa – um de cristal que ganhou dele há uns vinte anos, num dia dos namorados, repleto de margaridas, e mais uma vez, como nos últimos quarenta anos, não conseguiu dizer para ele que não gostava de flores.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Segredos


Ele não mencionava o nome dela na frente dela. Nunca. E essa segunda “dela” era a esposa (que nome careta) dele. O primeiro “dela” era outra ela, uma ela colega de trabalho que não tinha o nome mencionado por ele na frente da esposa dele. E isso a entristecia – a esposa, que sabia que se ele não mencionava o nome dela era porque um constrangimento o impedia. Um constrangimento tão interno que ele mesmo fingia que não existia. E ela, a esposa, que buscava tantas verdades que mal conseguia dizer para os filhos que o Papai Noel é um bom velhinho que mora no Polo Norte e traz presentes no fim do ano para todas as criancinhas (pra quê? O que alguém consegue vivendo de tantas verdades, além de uma úlcera depressiva?), teria que aprender que alguns pensamentos e sentimentos jamais – JAMAIS – serão ditos. E tratou ela (a esposa) de cultivar os dela.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

A colecionadora de mentiras


- Até casar sara

- Vai passar

- Deus ajuda quem cedo madruga

- Quem espera sempre alcança

- Prometo ser fiel e respeitar-te ...

- ... na alegria e na tristeza, na saúde e na doença

- Os últimos serão os primeiros

- E eles viveram felizes para sempre (ah, essa!)

Explica-me...


Eles nasceram com seis meses de diferença. Ele antes. Viram o crescimento um do outro: casas vizinhas, mesma escola e sala de aula, inclusive com professores tentando separá-los: falavam demais. E quando brigavam cortavam as pontas dos cabelos um do outro. Mesma escola de natação e de inglês. Muitos amigos em comum. As mesmas festas. Ele era bom em Matemática e Física. Ela em História e Português. E na adolescência ela se apaixonou por ele. E pouco tempo depois ele por ela. E ela descobriu que se apaixonar era ter uma montanha-russa no estômago, justo ela, que adorava os riscos dos parques de diversão. Ele foi o primeiro a beijá-la. E explicou tudo. Contava das outras meninas que já havia beijado, umas mais novas, outras mais velhas. Explicou para ela a diferença entre ser bonita, gostosa e bacana. E explicou também o que era ser tudo isso ao mesmo tempo. Depois se apaixonaram por outras pessoas. E dividiam as alegrias e as tristezas. Ela mais as tristezas do que ele. Quem quer tudo por inteiro sofre mais - talvez. E ele explicava como conquistar um menino, o que fazer e o que não fazer. Tentava protegê-la e oferecia os ombros quando ela se machucava. Passavam muitas tardes abraçados, deitados no gramado, falando de sonhos. Desejavam a alegria do outro. E isso era bom, tão bom: um amigo e uma amiga. E um dia os quilômetros se colocaram entre eles. Assim: se colocaram. E ela às vezes sente saudade das risadas. Mas em dias como hoje, quando ela está acossada num canto, pequenina e doída, ela tem vontade de pedir mais uma explicação. Sobre alguma coisa que ela não entendeu.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Bom dia


Enquanto o café esfriava, ela olhou pela janela: nenhum passarinho, nenhuma copa de árvore, apenas mais uma moradora de um dos apartamentos do prédio vizinho gritando com os filhos que não queriam vestir o uniforme. Fazia calor, muito calor – é que ela gostava muito de café; e fechou os olhos para se imaginar num chalé rodeado de neve, em frente a uma lareira com uma taça de vinho nas mãos. Chopin nos seus ouvidos. Nenhum amor – estava cansada dele. Mais do que cansada: machucada. Abriu os olhos e bebeu o café enquanto lia o jornal. Mais uma criança morta no mundo. Chorou. E não foi pouco.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Se...


Era a última vez que se viam, mas ela não sabia. Se soubesse teria se largado no abraço, sem pressa para ver o último capítulo da novela. Se soubesse teria fechado os olhos para alongar o beijo. Teria aspirado o olor da pele quente e macia. Teria pedido desculpas e dito eu te amo, mesmo que ele não gostasse de frases banais. Poderia então ter dito: eu não te amo, mas gosto de ficar perto de você, gosto do teu cheiro, do teu gosto, do teu toque, gosto de te ver sorrir, gosto do brilho que invade os teus olhos quando você sonha, mas eu não te amo. Poderia ter se calado. Se soubesse...mas ninguém sabe. De nada.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Foi no carnaval que passou...


Não havia mais pierrôs e colombinas, mas ainda muito riso e alegria e alguns palhaços no salão. Ela era apenas ela, sem fantasia e com os sonhos esquecidos por algumas horas. Jogava confete e serpentina, engolindo alguns enquanto ria sem pensar no minuto seguinte e cantava algumas marchinhas. E nesse momento de descuido é que seu braço foi tocado – agarrado, e ela obedeceu a ordem de dançar com ele, com um misto de medo e encanto no estômago. As mãos dadas e suadas. Os sorrisos soltos. Ele tinha os dentes brancos e os olhos negros. E não trocaram palavras enquanto os olhares e as mãos não se desgrudaram até a música acabar e o sol surgir para anunciar que o carnaval só voltaria no ano que vem.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Das palavras que deveriam ser ditas


Fulano era o chefe de um departamento de uma empresa como qualquer outro chefe de departamento de uma empresa e queria um cachorro para tomar conta do seu sítio. Ciclano, subordinado a Fulano, como acontece nos departamentos das empresas onde uma pessoa se subordina a outra, levou para a empresa um filhote de cachorro vira-lata para Fulano, mas Fulano não o quis. Ela, subordinada a Fulano e Ciclano, coitada, assistiu àquele impasse com o filhote no colo, pois o bichinho ficava andando pelo departamento e quase foi vítima de pisadas e chutes. Diante da negativa do Fulano, ela perguntou o que seria feito com o cachorrinho, ao que Fulano respondeu: deixe na rua. Como Fulano era chefe do chefe dela, ela não conseguiu responder “claro, me diga em qual esquina fica a tua mãe que eu deixo o bichinho junto”. E são várias as noites, mesmo muitos e muitos anos depois, em que essa resposta ainda se enrosca na garganta da menina, que não é mais uma menina, e que, claro, levou o filhote para casa.  

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Para os meus filhos, com verdade


Eu diria que é como estar no céu ou no paraíso, se eu achasse o céu um bom lugar para estar ou se acreditasse no paraíso. Então pegar nas suas mãozinhas, sentir o calor dos seus corpos, tocar as peles macias, sentir o cheiro das boquinhas secas pela manhã, ganhar ou roubar um beijo nas bochechas e ouvir frases como “deita aqui comigo” e “segura nas minhas mãos” é como estar na felicidade. O coração repousa, a mente esvazia, o barulho do mundo cessa e o corpo perde peso. Felicidade é uma coisa pequena. Ou melhor, duas coisinhas.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Pesadelo


Eles eram como pequenos carrapatos, mas embrenhavam-se nos fios de lã do tapete e cresciam e ganhavam força e quando você tentava puxá-los eles enfiavam as patinhas afiadas como lâminas nos seus dedos e faziam você chorar, de dor e de impotência. E a criança queria deitar no tapete para brincar, mas você tinha medo de que esses bichinhos a tomassem e a levassem embora e criança não sente medo, então não entende seu pavor ao vê-la deitada sobre pequenos monstros, e ri.