domingo, 31 de agosto de 2014

A louça de ontem


Dessa vez ela não desejava quebrar a taça nas suas mãos. Segurou-a com delicadeza debaixo da torneira aberta, um pingo de detergente apenas, como alguém que ela não se lembra quem lhe ensinou, mas não foi suficiente e a taça rachou com facilidade, como racham as coisas dentro dela. E o sangue tirado por um caco no dedo a assustou, dessa vez ela não o queria do lado de fora. Tirou o caco, tentou estancar aquele fio de sangue com o pano de enxugar louça, mas o sangue, por mínimo que seja, não pode ser estancado assim. Não com um pano sujo de óleo de lata de atum. Foi na salada que ela jogou atum em pedaços? Ou foi daquela noite em que comeu o atum sozinho, dentro da lata mesmo, com um garfo de sobremesa? Olhou para o dedo e o sangue ainda por um fio. Deixou. O pano precisava ficar ainda mais sujo.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

A visita

Pode ir, meu querido ... não precisa dizer nada, só fique perto ... sim, pode dizer alguma coisa, se quiser ... não sei se ele vai te ouvir; na dúvida, vamos acreditar que sim ... não sei, o que você gostaria de dizer? ... ah, conte das coisas que você gosta de fazer ... fale sobre algo que você aprendeu e gostou ... fale de coisas bonitas como sorvete, bola, parques, cachorros, amigos ... praia? sim, claro!, praia é lindo e ele vai gostar ... lembra como ele te jogava sobre as ondas e como vibrou quando você ficou em pé sobre a prancha? ... sente-se ali, perto dos pés dele ... só cuidado para não sentar em cima dos pés dele ... ah, e cuidado para não derrubar a manta ... não, não está frio, mas ele sente mais frio que a gente ... não sei ... pode encostar nele, sim, ele vai gostar ... eu não sei, mas acho que ele vai gostar. 

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Meu Norwegian wood - o filme

Uma mão segurou meu braço com força. Dança comigo, ele ordenou. Eu?, perguntei ríspida. Não, eu, ele respondeu. Grosso, pensei, mas antes de terminar o pensamento ele já tinha entrelaçado os dedos dele nos meus. Bandeira branca amor eu peço paz. Estávamos num baile de carnaval e começamos uma dancinha ridícula ao som das marchinhas, as mãos entrelaçadas e os pés batendo como índios na dança da chuva. Foi bom te ver outra vez tá fazendo um ano foi no carnaval que passou. Ele estava sem camisa e já naquela idade eu achava um ultraje qualquer homem andar sem camisa por aí. Se eles não gostam de ver mulher gorda, por exemplo, de biquíni, nós também não gostamos de ver tantos pelos e gordura localizada expostos. Pelo menos ele não tinha pelos no peito. Mas tinha umas sobrinhas nas laterais da barriga que balançavam por causa da dancinha ridícula. Foi a camélia que caiu do galho deu dois suspiros e depois morreu. Então tirei meu olhar da barriga e procurei os olhos desse desconhecido. Eram escuros, tão escuros que mal se via a pupila. Eles brilhavam. Tinham sede e fome. Como se soubessem que ficariam pouco por aqui, tudo tinha que ser visto com muita intensidade. Não era tarefa fácil mirá-los. Três anos depois, eu os vi sendo enterrados. Eles sabiam. 

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Orelhas


Agora que ela foi embora, sem bater a porta, sem gritar, sem desejar a morte dele, sem pedir que ele nunca mais a procure, sem quebrar os porta-retratos, sem cuspir na cara dele, ele se arrependeu de não ter decorado as orelhas dela. Teriam elas alguma pintinha ou mancha? Uma pequena deformidade transformada em charme, como um lóbulo rasgadinho no meio que ficasse no formato de um coração? Orelhas que ele tanto beijou, lambeu e mordeu. Orelhas que ouviram tantas palavras sujas e limpas. E ele não sabia nada delas. Tirou o celular do bolso e procurou pelas fotos dela, da época em que ela ainda ria. Eles riam. Deu zoom nas fotos, mas em todas as orelhas não apareciam, escondidas pelo cabelo castanho, cacheado e comprido. Tem certeza que deseja excluir todas as fotos? Apertou o sim.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Carta para a mulher que estava na Paulista

Cara mulher que estava hoje em um ponto de ônibus da Avenida Paulista ameaçando jogar uma criança no meio da rua,

eu estava caminhando na avenida – tinha acabado de deixar meus filhos pequenos na escola e estava justamente pensando em como deixar as crianças na escola na segunda-feira é quase como atingir o nirvana, dado o silêncio que se instaura na nossa cabeça – quando vi uma menina obesa, em torno de uns seis anos, berrando.

Você estava enfiando uma chupeta goela abaixo dessa menina, que não sei se é tua filha, sobrinha, enteada, vizinha, sei lá. A menina não parava de chorar e jogou a chupeta longe. Você deu um tapa na perna dela. Ela tentou se aconchegar em uma senhora que estava ao lado dela, mas a senhora pediu para ela ficar quieta e só. Não sei se era a avó, a tia, a tia-avó, a vizinha, sei lá. Você olhava ansiosa para a avenida e para o relógio no seu pulso e a menina não parava de chorar. Você fechou a mão como quem vai dar um murro e chegou perto do rosto da menina. Desistiu da agressão física, mas disse: eu te jogo no meio da avenida! Pensa que não? Eu sou louca!

Então eu parei a caminhada e cheguei perto de você. Fiquei te olhando e você me olhou também. Eu queria te constranger, mas não para te deixar envergonhada. Eu queria te constranger para que, quem sabe assim, você se acalmasse. Eu estava de óculos escuros e você não me viu chorando.

Na verdade eu queria me aproximar, abraçar a menina até você se acalmar e te dizer que você não é louca. Você só deve estar cansada. Não sei quantos ônibus havia tomado com aquela senhora e aquela menina chorando. Não sei quantos ônibus ainda iria tomar. Provavelmente já estava atrasada e ainda tinha que aguentar o choro de uma criança, que penetra na nossa cabeça como faca afiada. Você deve estar preocupada com as contas para pagar, com o dinheiro que nunca chega ao final do mês, com os consertos pendentes da casa. É bem provável que você tenha um patrão ou uma patroa que não está nem aí para os seus problemas, que apenas te vê como um meio para obter mais lucros, sem que você tenha qualquer participação neles. É bem provável que você crie essa menina, se ela for mesmo tua filha, sozinha. Você deve dormir pouco, trabalhar muito e não ter tempo para diversão.

Eu chorava porque sei o que você passa. E olha que aparentemente eu tenho uma vida bem mais confortável que a tua. Mas, acredite em mim: eu e você não somos loucas. Apenas estamos sobrecarregadas. Apenas temos que lidar com nossos demônios, e não acredite em quem te diga que não os tem.

Mas não tive coragem de dizer o que eu pensava. E quando vi que você se aquietou, eu fui, agora sem a preocupação de segurar as lágrimas. Só que não te disse isso, tão importante: você não é louca! E você não sai da minha cabeça e passei o dia pensando em você, torcendo para a menina parar de chorar e te dar um pouco de silêncio.

E como não consigo ficar em paz por não ter te dito que você não é louca, resolvi te escrever esta carta que você não vai ler.


Ou seja, tudo o que fiz hoje para você foi em vão. 

Espero que esteja mais calma. E...você não é louca!

domingo, 24 de agosto de 2014

Mapa


Quando penso em você, e penso todos os dias, muitas vezes ao longo dos meus longos dias – ah, a insônia –, lembro das nossas risadas, olhos nos olhos e risadas; transporto-nos para uma cidade em que nunca pisamos – os mapas perdem as fronteiras quando eu e você estamos na minha memória; em seguida coloco-nos em uma cachoeira visitada, em um banco de praça que ainda vejo durante as férias, em um quarto que não sei mais se era meu, seu, nosso, ou de ninguém.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Ses

Se você tivesse me pedido desculpas, me olhado no rosto, nos olhos, e dito desculpe-me; se tivéssemos feito aquela viagem para Paris, para o Rio de Janeiro, para Piedade, para a casa da minha tia; se tivéssemos transado até o dia invadir o quarto naquela quinta-feira, naquela segunda; se você não tivesse me deixado ir sozinha para tantos lugares; se eu tivesse te acompanhado em tantos lugares; se a criança tivesse nascido; se nossos beijos fossem mais demorados; se você não tivesse ido embora daquele quarto de hotel; se tivéssemos menos escrúpulo, escrúpulo nenhum; se você me atendesse agora; se eu fosse até você agora, que lembranças guardaríamos para o último minuto? 

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Je ne veux pas travailler

Tarde de segunda. Ela na frente de um computador, enfiando números em uma planilha a fim de obter uma margem que a criação da própria planilha faz acreditar ser certa. Uma pilha de contratos esperando sua assinatura. A redução em cláusulas. Uma xícara com café e a vontade de ser resgatada por um homem de corpo, alma e mente nus. Uma cama desarrumada, um livro nas mãos, uma poesia lida em voz alta, escute isso, a quentura do sol invadindo pelo vidro da janela, uma taça de vinho branco gelado, Pink Martini como trilha e um cigarro para ajudar a corrosão. Mas alguém inventou que as segundas são para as planilhas e as cláusulas. Tantas pessoas acreditaram, mas ela não é uma dessas. 

terça-feira, 12 de agosto de 2014

A primavera e a seca

Ela não tinha mais que um metro e sessenta. E pesava bem mais do que podia aguentar sua baixa estatura.  Aparentava estar na faixa dos setenta, mas tenho uma certeza que não sei de onde vem que ela não tinha chegado aos sessenta. A pele estava queimada, era dura e craquelada. Os cabelos grisalhos, até a cintura, estavam presos num rabo de cavalo indolente. Ela caminhava vestida de azul, passos apressados, quando se curvou diante de um canteiro e começou a puxar dos pulmões algo pesado e antigo. O som desse algo vindo raspava na garganta, imaginei o concreto sendo preparado na betoneira, quando ela abriu a boca e cuspiu uma, duas, três, inúmeras vezes um muco espesso e esverdeado. E barulhento. Mas então ela levantou os olhos e viu que despejava o catarro numa primavera florida. Que linda, ela disse enquanto cheirou a flor roxa. E continuou a caminhada. 

sábado, 9 de agosto de 2014

Perdão


Sabe o que é? Outro dia olhei para você e não te vi tão bonito como sempre achei. Alguma coisa no teu nariz, não sei, parecida com uma massa disforme. Ele sempre foi assim? Quer dizer, desde que te conheci? Ou teu nariz mudou nesses dez anos? Teus lábios também; não eram mais grossos? Perdoe-me, estou confusa, mas cabe muita dor em dez anos, deve ser isso. Você perdeu mais cabelo do que eu pude acompanhar, não sei onde ficou o brilho do teus olhos. Eles já brilharam, não é? Perdoe-me, estou mesmo confusa. Em dez anos descobri uma parte tão feia de mim, nem sei se foi você quem abriu a porta para que essa parte saísse, não quero fazer acusações que levarão ninguém a lugar algum, mas talvez o meu feio tenha contaminado o meu olhar. Pode ser isso. Talvez você continue mesmo bonito. Talvez nunca tenha sido. É isso, perdoe-me.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Convite para você


Eu queria tanto te ver, mas não sei como fazer um convite, não sei como dizer que eu apenas queria passar uns dois dias inteiros ao teu lado, olhando para você me olhando, sem necessidade de corpos nus entrelaçados e suados. Eu queria mesmo é te olhar, te ouvir, rir como a gente sempre riu, encostar no teu peito e talvez chorar um pouco, deitar ao teu lado com as nossas pernas para cima enquanto conversamos sobre qualquer coisa sem importância. Um beijo, quem sabe...é, acho que eu gostaria de um beijo, de uma carícia no rosto, de massagem nos pés. Você ainda gosta de fazer massagem nos pés?