sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Lanche da tarde

A barata ia passando pela sala a caminho da cozinha quando seus olhares se cruzaram: só preciso de um pouco de açúcar. A mulher balançou os ombros, os olhos ainda cravados no inseto: que leve o que puder carregar. O som da tevê ao fundo, alguém ensinando uma receita prática com queijo e goiabada. A barata mostrou-se interessada, a mulher percebeu nos olhos do bichinho: não tenho mais queijo e goiabada, há muito tempo. As anteninhas se abaixaram. Não tenho mais crianças que gostem desse doce, a mulher tentou explicar, mas a barata já estava caminhando de novo. Ei!, a mulher precisava continuar; mas a barata já estava na despensa, equilibrando-se debaixo de um quilo de açúcar. 

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Dia de Natal

Às vezes, penso que escrevo para este pé.
(António Lobo Antunes)





Porque um coração de mãe vive rasgando, milimetricamente sendo rasgado, diariamente, mente, mente, mente, as perninhas magrelas sendo ajeitadas na prancha pelos bombeiros, uma estrada vazia, um carro amassado com as rodas para cima, uma mulher tremendo no canteiro, e as perninhas, as perninhas na prancha, as perninhas amarradas, as perninhas que não poderiam ser machucadas, deus?, é dia de natal, deus?, as crianças deveriam ganhar abraços, beijos, presentes e comida quentinha, as perninhas vistas de longe mas o suficiente para aparecerem no meu sonho, na salada do meu almoço, no sabonete na pia, nas linhas de um caderno em branco. 

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

A grande prisão

Poder ver o mundo só a partir dos próprios olhos é como viver numa prisão



E se, num só dia, algumas poucas horas para uma vida inteira, ela pudesse ver o que vê aquela mulher com o cabelo per-fei-ta-men-te penteado? Como é o mundo de uma mulher que não tem um único, nem mesmo um meio fio de cabelo fora do lugar? E os óculos feitos para aquele formato de rosto que não escorregam pelo nariz? Nenhuma glândula capaz de produzir uma gota de suor. Unhas milimetricamente pintadas e brilhantes. O ouro certo nas orelhas e dedos certos. A mulher conduzida por um motorista que deixou Bangladesh com os pés ainda tão pequenos, apedrejado pelos coleguinhas na nova escola: FOB! O menino largado na fronteira pelo exportador, sem importador que por ele quisesse ser responsável. Como seria? Por um só dia.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Temperos

Segunda-feira. O telefone toca às dez da manhã, pontualmente, como nos últimos dez anos: filha, vou fazer peixe, quer vir almoçar com o papai? Eu não como peixe, papai, lembra?, mas eu vou e como a salada e o arroz e o feijão. Então vou caprichar no tempero do feijão, minha filha, com coentro e linguiça. E pontualmente, como nos últimos dez anos, ela chega à casa paterna ao meio-dia, carregando a salada, o arroz e o feijão com coentro e linguiça. Além da pescada branca, o peixe preferido do pai. 

...

Gostou do peixinho, minha filha?

Muito, papai.

E ele a serve de uma fatia de pudim de leite, que ela deixou pronto no domingo. 

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Descanso

Um dia de cama desarrumada e roupas sujas no chão. Descanso para a escova de cabelo e a bolsa de maquiagem. Perfume da pele. Tempo para beijar e abraçar bem apertado, doído até; quem sabe um sorvete que pingasse no sofá ou no tapete para testemunhar que ali, numa tarde preguiçosa, o amor respirou. 

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Prometo dizer a verdade

Invejei o sono dele desde a primeira vez em que dormimos juntos. Dezenove anos e dez meses. O dia ainda não havia me deixado e já ouvia a respiração ao lado, profunda e compassada, como se nunca nada fosse capaz de aborrecê-lo. Dezenove anos e dez meses com uma respiração sempre com...pas...sa...da...men...te indolor. Tantas noites me contorci na cama para terminar com a cabeça sufocada entre os joelhos envoltos nos meus braços. E ele respirava. Naquela noite, eu só precisava ouvir um grito dele, desesperado e derradeiro, com um pedido de desculpas. Eu queria aquele grito, precisava daquele grito: estava cansada dos seus silêncios. E se não o salvei foi porque o arrependimento veio com o mesmo atraso inócuo do pedido de desculpas.


Que me levem a júri, me condenem, me encarcerem, me batam, me pisem, me arranquem a pele. O meu alívio é saber que o mundo não o carrega mais.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Apelação

Nove badaladas na Sé cinza, garoenta e fedida. Dois pombos roliços disputam o mesmo buraco no beirado do Palácio da Justiça. Um desembargador precisa de um café quente, forte e sem açúcar: uma pauta com duzentos e cinquenta julgamentos e uma noite mal dormida por causa da tosse da esposa. Um jornaleiro que deseja boa sorte a quem passa por ali não sabe que a sorte só estará de um lado. O desembargador que dormiu mal ainda não sabe se responsabilizará o médico que apertou demais o fórceps no parto da mulher cujo nome ele nem mesmo lembra. A mulher que tentou engravidar por cinco anos e saiu da maternidade com os braços vazios. A mulher que está no fundo da sala de julgamento, mas que ele não conhece. 


terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Pequena prece

Se acreditasse em Deus, talvez meu único pedido a ele (Ele?) fosse para que me ajudasse a não acreditar em mim. Não nos meus desejos e sentimentos. Não, não é isso. É a descrença naquilo que a minha pessoa pode e está. Que me restasse apenas a crença no que sou. E o que sou ninguém vê, ninguém toca, ninguém escuta, ninguém alcança. O que sou é vapor. E nada além disso me interessa. 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Filhos do acaso

Lá vem ela de novo, as veias cinzas e gordas dos pés quase rasgando a pele, um saco plástico transparente sobre camadas de roupas escuras da sujeira das ruas, os cabelos duros como pelos de ratazanas, a pele do rosto sulcada e em cada sulco o cheiro da indigência: mijo, merda e feijão podre. Ela me estende a mão, a náusea se enrola na minha língua, ela me chama de filha, o que eu não sou - minha mãe tem a pele clara e limpa e cheirosa e não anda pelas ruas com as mãos estendidas - mas poderia ter sido. Por que eu não poderia ter sido?

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Um momento de Luciana Gerbovic, por Juliana Giantin OU [...]

O que se é só se pode encontrar no que não é dito, nas culpas deixadas dentro, nos castigos que se vão escolhendo.
(Nuno Camarneiro, em Debaixo de Algum Céu)


Mamãe, faz meu tetê, mamãe, também quero tetê, mamãe, já fez meu tetê?, mamãe, quero fazer xixi no vaso, mamãe, cadê as minhas petas?, mamãe, fiz xixi no chão, mamãe, e o meu tetê?, mamãe, quero tetê já!, mamãe, ele pegou as minhas petas, mamãe, ele me empurrou, mamãe, ele me bateu primeiro, mamãe...

Nesse momento ela se sente presa numa teia de aranha estridente, olha para a porta do elevador, para as janelas enredadas, corre para o banheiro e tranca a porta. O grito na iminência de escapar pelos vãos dos dentes, por isso o esforço para manter a boca fechada.

Eu me lembro da minha mãe assim, como Luciana, trancada no banheiro, pedindo um momento de paz para mim e minha irmã dois anos mais nova. Eu me lembro do dia em que ela demorou para abrir a porta, eu e minha irmã nos enfrentando por causa de uma boneca, uma puxando o cabelo da outra, ela me jogando contra a parede, eu revidando e empurrando-a contra a escada, ela caindo, eu gritando, ela chorando, minha mãe abrindo a porta, minha irmã gritando, eu chorando, minha mãe berrando, minha irmã lá embaixo, eu correndo em círculos, minha irmã gemendo, minha mãe descendo, eu atrás, minha irmã indo para um hospital com alguma coisa quebrada que não consertou mais.

[...]

Eu, minha mãe e meu pai também presos numa teia, só que silenciosa. E venenosa. Uma célula assassinada a cada minuto.

Minha irmã num caixão e minha mãe conseguiu me dizer não foi sua culpa, com um abraço duro. O abraço do meu pai foi macio, porém mudo.

[...]

Vivi anos sem palavras. Era como uma tartaruga presa num aquário sem água. Éramos. Ainda sou, agora trancada numa UTI infantil em busca de cura e sorrisos – oi, tia Juliana! Obrigada, Doutora Juliana!; cada fracasso um novo tombo na escada.

[...]

Sua irmã teria orgulho de você, minha mãe conseguiu me dizer uma vez, ao me ver chegando de um plantão de setenta e duas horas. Não, ela não teria. Se eu não a tivesse empurrado, ela não teria uma irmã médica, mas pintora. Ao menos uma tentativa de artista plástica.

É insuportável chegar ao extremo do silêncio, meus quadros ficam pela metade, como o corpo da minha mãe. Pinceladas inacabadas, como o sorriso do meu pai quando foi embora de casa. Ele, que ainda tenta me ver todo Natal: não vai dar, pai. É nessa época que conheço o mundo fora do aquário. Passaportes carimbados e passagens sem acompanhantes.

[...]

Não consegui ter filhos. Há muito silêncio dentro de mim. Não o silêncio que minha mãe procurava naquela tarde. Não o silêncio que Luciana procura trancada no banheiro, mas o outro:

[...]

aquele que a apavora.

Aquele em que Luciana pensa quando os meninos finalmente silenciaram, que a faz sair correndo do banheiro com o coração paralisado por uma mente materna cruelmente imaginativa – uma criança embaixo de uma estante, uma rede de proteção que não funciona e um filho despedaçado no ar - aquele que minha mãe sentiu e que Luciana julga ser incompatível com o ato de respirar. Mas minha mãe respira. Tantas mães respiram. Eu respiro.


Luciana podia ter aproveitado mais a quietude no banheiro, até um banho com água bem quente seria possível, os meninos apenas tinham encontrado o programa favorito na tevê, sentados lado a lado como dois amigos, incapazes de entender a mãe parada na sala, com o pavor nos olhos por causa de um silêncio que ela mesma havia pedido.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Mentiras de domingo


Esqueci um documento impresso na gaveta do escritório, foi o que ele disse para ela no domingo à tarde. Ela enxugava a louça do almoço quando ele a beijou na testa. Volto logo foi a última frase dele antes de fechar a porta.

Ela largou tudo por terminar na pia e foi se olhar no espelho. O culote crescia a cada dia, e a cada dia mais mole. Dobras na barriga. Unhas descascadas e cabelos brancos esperando uma folga para o cabeleireiro. Estava feia. E chata. Só reclamava do salário que não dá conta dos boletos. E da culpa de não ficar tão perto dos três filhos como queria. E do cansaço do final de semana, com filhos, faxina e tanta comida para fazer. E do cansaço do resto da semana. O eterno cansaço de uma vida adulta.

Ele iria demorar, ela sabia, e pela primeira vez, na frente daquele espelho, sentiu-se feliz por ele.