segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Um analgésico, uma cachaça ou Lobo Antunes, por favor...

O carro abalroado dói. O choro da criança dói. A birra da criança dói. A imagem dos reféns no Quênia dói. A notícia que chega da Síria dói. A criança dormindo na rua dói. O lucro dos bancos dói. O preço do metro quadrado dói. O Iphone grudado nos nossos ouvidos e olhos dói. A existência da Segunda Guerra dói. A Iugoslávia despedaçada dói. O esquecimento da Armênia dói. A ganância das grandes corporações dói. O sumiço do silêncio dói. O som da televisão dói. O andamento do Judiciário dói. A falta de educação no trânsito dói. Não ser um camaleão sem consciência da própria camuflagem dói. Não poder tirar o dia pra ler Lobo Antunes dói. Ler Lobo Antunes dói. Tomar suco embalado que dura vinte meses dói. Falta de empatia dói. Fila no hospital dói. Mais um shopping na cidade dói. A fome na África dói. A AIDS na África dói. Mais um carro nas ruas dói. Atendimento de call center dói. Propaganda de celular dói. Ter uma hora de almoço dói. Ter cartão de ponto na empresa dói. Dar um tapa no bumbum do filho dói. Criança espancada dói. Velho abandonado dói. Bicho maltratado dói. O preço da comida dói. Falta de comida dói. A lista dos mais lidos dói. Minha cabeça, minha coluna, meus pés, minhas pernas, meus braços, minhas mãos, meus olhos, meu estômago...salve-me, Lobo Antunes, salve-me.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Nana, nenê

É como se você colocasse seu coração, seus pulmões, seu estômago, seus rins, seus braços, suas pernas, seus pés e suas mãos na cama, os cobrisse e dissesse boa noite. Mas como se isso não bastasse é como se fosse preciso passar a noite ao lado deles para ver se não deixam de se mexer. Porque não há, agora, maior pavor no mundo, além do mundo, do que vê-los sem se mexer. É preciso um sopro dos pulmões ao menos. É preciso que o coração dê um pulinho e que os rins filtrem uma gota que seja. Porque o medo é maior que o mundo. Porque o amor é maior que o mundo. Porque não é amor. É isso, algo para o qual não foi inventada uma palavra. Sinto muito. E não é nada disso porque se fossem seus esse coração, esses pulmões, esse estômago, esses rins, esses braços, essas pernas, esses pés e essas mãos, você não se queixaria se endurecessem. É como se fossem o coração, os pulmões, o estômago, os rins, os braços, as pernas, os pés e as mãos do mundo. Nada antes. Nada mais depois. O Aleph. Ali, hoje, naquela cama, dormindo, depois de você ter lido uma história para ele. 

sábado, 14 de setembro de 2013

Jethro Tull


No meu primeiro ano como estudante universitária e moradora de São Paulo, numa das minhas muitas viagens de ônibus pela cidade, sentei-me ao lado de um menino então com cinco ou seis anos de idade, acompanhado de um homem não tão jovem quanto eu. Enquanto eu me distraía pela janela (não tínhamos as cabeças voltadas só para os celulares, nem mesmo havia os celulares), o garoto esticou um walkman ou um discman (não me lembro exatamente o que usávamos para ouvir música naqueles anos) para o homem: pai, coloca Jethro Tull pra mim? Aqui a gente ouve música boa, foi a resposta do homem para o meu sorriso arregalado.

Desde então a imagem daquele menino me invade quando estou parada no trânsito, ou caminhando, ou ouvindo música que não é mais Jethro Tull, ou tomando sorvete, ou trabalhando, ou vendo meus filhos brincarem, ou jogando Candy Crush. E hoje, numa dessas invasões, eu descobri, não sem susto, que aquele menino não é mais um menino. Aquele menino nem é mais um adolescente. Aquele menino deve ter a idade que o pai dele tinha quando sorriu para mim e as perguntas e inquietações que me rondavam naquele ônibus continuam aqui.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Eu e ela ou ela e eu


Nossas diferenças:

A calça que eu visto deve custar umas dez vezes a dela. O xampu que eu uso deixa o meu cabelo sedoso. O dela não. Meu celular tem um computador dentro dele. O dela só faz e recebe ligações. Eu estou no metrô por opção. Ela por necessidade.

Nossas semelhanças:

Nossas calças, xampus e celulares foram feitos nos mesmos lugares. E ela segura a mãozinha de seu filho para com ela acariciar o próprio rosto, pouco antes de encher seu bebê de beijos. 

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

A maçã

De longe, as coisas pareciam simples, sem razão para se preocupar com o liquidificador quebrado, os dentes da criança não escovados, a porta do carro amassada, a conta de luz atrasada, a lâmpada do banheiro queimada, a geladeira vazia de alimentos não vencidos, as noites de uma semana não dormidas, os abraços e os beijos não dados, os amigos não visitados. De longe, a vida era grande e livre como ondas do mar. De longe, os pulmões e os corações eram fortes e corajosos. Mas doía quando chegava perto. Doía muito.  

Banco imobiliário

Câncer. Terremoto. Gripe. Difteria. Aids. Enfarte. Derrame. Acidente de carro. Ebola. Amor não correspondido. Depressão. Enfisema. Cólera. Alzheimer. Avalanche. Síndrome do pânico. Parkinson. Quedas. Malária. Sopro. Úlcera. Pneumonia. Ciclone. Afogamento. Queimadura. Bronquite. Esclerose múltipla. Dengue. Raiva. Tornado. Febre amarela. Convulsão. Epilepsia. Peste bubônica. Alcoolismo. Cardiopatia isquêmica. Diarreia. Desnutrição. Mudez. Ansiedade generalizada. Tuberculose. Diabete. Pancreatite. Inundações. Hemofilia. Esquizofrenia. Surdez. Furacão. Bipolaridade. Tsunami. Seca. Cegueira. Anencefalia. E ainda inventamos a guerra. 

sábado, 7 de setembro de 2013

Detalhes


A escova de dentes e a de cabelo. O xampu. O creme de barbear e a loção. As toalhas. O cortador de unha. O perfume e os desodorantes. O espelho portátil. Os comprimidos para dor de cabeça. O roupão. Os sapatos. As meias. As roupas. As camisetas para dormir. As gravatas. As cuecas. As sungas. Os cintos. As mochilas. As malas. O computador. Os livros. Os documentos. A bicicleta. As fotografias. O capacete. Os óculos. Os gibis. Os quadros. Os selos. O travesseiro. Pela primeira vez, em dezessete anos, ela iria dormir com a casa vazia dele, se não fosse o casaco vermelho que ele usava para correr no frio, esquecido em cima da cama. 

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Preservações

Em todos os encontros que tiveram, ele chegou atrasado. Porque estava jogando futebol, ou andando de moto, ou jogando bilhar com os amigos, ou no bar com conhecidos de bar, ou vendo novela. Mas sempre foi. E sempre foi com os olhos alegres, a boca úmida e as mãos quentes. Nas noites frias, ele a envolvia, nua e friolenta, num cobertor extra. Nas tardes quentes, ele a deitava, nua e calorenta, nas pedras molhadas de uma cachoeira. Ele gostava de pés femininos e ela, sem precisar implorar, nem mesmo pedir, ganhava massagens infinitas durante todo um filme ou um capítulo de novela. Ela gostava do seu reflexo nele. Nenhum outro espelho mostrou-a tão bonita. Foram incontáveis pedidos de casamento, até ajoelhado, até com lágrimas. Ela sempre disse não. Ninguém sabe o porquê. 

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Amanhã...talvez.

Ricardo saiu da cama depois de uma noite de sono picotado pela preocupação com a prova de estatística. Não conseguiria a nota mínima, perderia uma parte das férias, talvez pagaria por uma dependência, aguentaria o discurso dos pais, a reclamação da namorada e as piadas do chefe. Depois da prova ainda teria que pedir dilação de prazo para a entrega do trabalho de planejamento e assinar a lista da última aula a tempo de chegar na agência para uma reunião de fechamento, sem almoço. Se soubesse que um ônibus atravessaria o seu presente e roubaria o seu futuro, talvez Ricardo tivesse tido uma última noite bem dormida. 

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Pães e sonhos

Três pãezinhos, por favor. Dois para ela: um com molho de tomate em lata e outro com creme de chocolate metade branco e metade preto. O terceiro ficava ali, no canto da mesa, mas não tão no canto que ela não pudesse vê-lo, martelando a presença de uma falta a cada dia mais irreparável, mesmo depois de oito anos, três meses e cinco dias.