segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Memórias

Coldplay!, ela gritou ao sentar-se na cama com os braços para cima, em posição de vitória.

O quê?, ele resmungou ao lado. São três e dez da madrugada.

O nome da banda que toca a música que ouvi hoje, ontem, pela manhã. Coldplay! Ouvi a música e passei o dia tentando lembrar o nome da banda. Não me saía o Pearl Jam da cabeça, mas eu sabia que não era. Pearl Jam e Coldplay, o que têm a ver, né?

O que tem a ver você não ter procurado no Google, isso sim. Sabe, Google?

Queria voltar a ter essa sensação de contar só com a memória, sabe? Fiquei lembrando de como era não ter o Google num smartphone extensão das nossas mãos. Passar o dia tentando lembrar de um nome, às vezes dois ou três dias, e então o nome aparecer, como mágica. Lembra disso? Não é lindo, às três da manhã, durante o sonho, e eu nem lembro o que estava sonhando, o nome vir? E sem a ajuda do Google! Ainda podemos acreditar, você me entende? 

Dorme. São três da manhã.


Três da manhã! Como é mesmo aquele poema das três da manhã...?

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

O apito da sirene


Ele estava parado na plataforma da estação, esperando o trem para a zona oeste da cidade. Cabelos brancos, pele solta, magro, não sorria. Sobre a calça jeans e a camisa de mangas curtas, um jaleco de brim azul-marinho desbotado, desses que denunciam que quem o veste está na base da cadeia alimentar e vende seu tempo controlado para entrar, sair, comer, rir, mijar e cagar. Ele não tirava os olhos do trilho e entrou no trem como mais uma peça. Meu avô. O tempo todo não deixei de pensar no meu avô, mesmo sem saber se já o vi num jaleco como aquele.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Sete dias

Um dia. Não, dois. Três. Sete, vai. Durante uma semana ela precisa deixar de ser guerreira e forte e batalhadora e solucionadora de problemas e foda. Durante uma semana deixar de se preocupar com o trabalho que paga contas, com a despensa que precisa estar abastecida, com o horário das crianças, com o barulho do carro, com a dor de ouvido do filho na madrugada, com o peso do próprio corpo, com as unhas pintadas para as reuniões com homens que se levam a sério. Uma semana com roupas de algodão, nada que grude no corpo. Uma semana sem sapatos, nem chinelos. Quiçá uma semana sem roupa alguma, jogada na cama, na grama, na areia, na água salgada. Ou doce. Cafuné e massagem nos pés. Porque durante uma semana ela precisa ser tratada como flor rara mesmo, mulherzinha, não frágil, porque não é, mas delicada. Só uma semana e depois volta a ser o que é, mesmo que ela não saiba quem seja. 

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Um dia esse dia chega


A cama descoberta. Os dois travesseiros ainda com as marcas das mãos. O lençol branco amarrotado. O computador aberto sobre a cama, ao lado de um livro (Como esquecer em dez passos), de um bloco de papel e de uma caneta. Uma xícara com resto de café na mesinha de cabeceira, ao lado de um copo cheio de água, de uma cartela de analgésico vazia, de uma revista de moda, de um cinzeiro cheio e de uma caixinha de fósforos com o logo de um restaurante parisiense. Um par de chinelos debaixo da cama. Um vestido vermelho no chão, entre o quarto e o banheiro. Ela fechou a porta. Nem olhou para trás.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Um presente


Você veio. Não identifiquei o que trazia nas mãos, mas as minhas começaram a suar assim que você entrou, o mesmo sorriso e o mesmo meneio de lado com a cabeça, como sempre fez quando estava sem graça, porém corajoso. Tentei esconder as mãos, que queriam correr para tocar teu rosto, teus ombros, tuas mãos que traziam algo não identificável. Não era nenhum anel, pois anéis não são do teu feitio. Com o que você me presentearia? Uma folha arrancada de uma árvore? Uma foto tua ainda no berço? Uma tartaruga? Uma compota de caju? Uma página de algum livro que estava lendo? Minhas mãos fugiram e levaram meus braços que te abraçaram. Forte. Suave. O teu cheiro ainda é o teu cheiro. E você foi, levando não sei o quê nas mãos.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Pedra de paciência

Os homens árabes são bonitos. A negritude dos cabelos, a pele curtida, o cheiro do deserto, o nariz concreto e metafórico, a profundidade dos olhos. Mas, talvez – veja bem, não tenho nenhum estudo no assunto –, os homens árabes sejam apenas isso: homens bonitos.

* * *

Almir era um desses árabes bonitos. Casou-se com mais de trinta anos com Iracema, que ainda não tinha completado dezessete. Moravam numa cidade pequena, dessas com apenas uma rua que vai e outra que volta. Iracema também era bonita, mas depois de onze filhos e um perder de contas das mulheres que Almir levou para a cama, definhou. Só voltou a sorrir quando Almir morreu sem aviso prévio: coração. No velório, muito rímel escorrido. Jamil, o filho mais velho, ofendeu-se pela mãe. Chegou em casa e tirou das gavetas do finado pai todas as lembranças das outras. Rasgou cartas, picotou fotografias, pisou em um frasco de perfume, rasgou um lenço preto com flores vermelhas bordadas, queimou um livro de poesias. Iracema deixou, o sorriso agora largado.

Jamil casou-se onze meses depois com Ana, que conheceu numa cidade vizinha. Mudaram-se para uma cidade um pouco maior, duas ruas que vão e duas que vêm. Jamil já não era desses árabes bonitos como o pai, mas acreditava que sim e isso bastava. Assim como não desistiu de Ana, a moça mais loira da cidade, não desistiu de nenhuma das mulheres que quis levar para a cama, uma conta que Ana também perdeu. Badi, o filho mais velho de Jamil e Ana, cansado do choro da mãe, um dia, não tão moleque e ainda não adulto, fez as malas para o pai: fora! Doeu, mas Ana gostou, ao menos alguém tinha aprendido alguma coisa. Jamil foi. Pelo que contam, não deve sentir a falta de Ana e dos filhos.


Dez anos depois, Badi, árabe tão bonito quanto o avô – para frustração do seu pai –, apaixonou-se por mim. E eu por ele, sempre calado a me sorrir. Casamos em menos de um ano de namoro, Ana me garantindo que Badi sim seria um marido fiel. E assim foi, até que deixou de ser. Também perdi as contas e o sono, como Ana e Iracema, e possivelmente como as outras que vieram antes de nós, sobre as quais nunca me contaram. Talvez seja assim mesmo e somos apenas mulheres bobas que não entendem da vida e da paixão. Um alívio, ao menos, ainda sinto: o de não ter gerado mais homens nessa família.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Deus existe


Senhor... isso os deixava tão distantes ... Deus? ... ainda uma dúvida, ela tinha vergonha, não, vergonha não é le mot juste, ela tinha é medo, isso mesmo, medo de confessar sua dúvida ... o quê??? ... e desistiu de tentar traduzir o que realmente sentia, era mais fácil, e com isso queria dizer menos doloroso, dizer apenas que sim, acredito, claro ... mas agora, sozinha na cama, o quarto habitado apenas por ela e seu reflexo invisível no vidro da janela, não podia soltar quaisquer palavras, tinha que respirar fundo e cavoucá-las, buscar a dúvida nas entranhas e trazê-la para a superfície, rolando garganta acima, eu não sei ... se sentia ridícula tendo que chamá-lo, acreditar ou não não é uma escolha, mas ninguém parece entender, fica tão mais fácil, agora, sim, fácil, não entender ... e ela sufocada pela falta da mot juste. Na estante do quarto escuro, Clarice, Virginia, Antonio, João, Samuel, Liev, Fiódor, Herberto, Hilda, Fernando, Manuel, Carlos, Raymond, Gustave, Anton, Marcel ...  ela não via, mas eles estavam ali. Fechou os olhos, abraçou os joelhos.. Ah, quem é que precisa dele?