terça-feira, 26 de abril de 2016

Querida, não esqueça do leite desnatado. Te amo!

A reunião, planejada, foi cancelada. A febre e a dor de cabeça no corpo dele, não planejadas, passaram na frente. O corpo pequeno, que só deveria brincar, não dormiu à noite, conforme planejado. E minhas oito horas de sono, planejadas, foram interrompidas, quantas vezes? Contei uma, duas, três, acho que cinco. Há quantos anos, aliás, minhas horas de sono não passam de planos? E tem a morte. Ah, essa que não conhece agenda, relógio, calendário ou planilha. Essa que chega e passa na frente do que for, até de reunião planejada com o presidente dos Estados Unidos da América, que não sei se ainda é o homem mais importante (whatever it means) do planeta, mas que também pode ser alcançado pela morte. Oh, god! E ela chega e passa na frente de todos os planos, nos deixando assim, assim... só com a certeza de que não temos palavras e de que vivemos como se ela não estivesse no único plano que dá certo e como se nossos planos fossem todos se concretizar só porque estão nas agendas e nas planilhas, às vezes até escritos no calendário pregado com fita crepe na porta da geladeira.


Mas a reunião fica para amanhã. Ou depois de amanhã. Assim como a compra do leite, apesar do bilhete na geladeira há dois dias. 





segunda-feira, 18 de abril de 2016

Hora do recreio

E aí, cansou?

Ah, dando um tempo...

Estranho, né?

O quê?

Essa gente toda com quem convivemos anos, um monte de histórias, aí cada um para um lado e de repente a gente se reúne de novo.

Por que veio, então?

Pra ver quem engordou, quem emagreceu, quem casou, separou, teve filhos, enfim, pra ver se tem alguém pior que eu. E você?

Eu o quê?

Por que veio se é pra se esconder num canto?

Não estou me escondendo, só estou dando um tempo.

E enrolando um baseado...

Nossa, você vê coisa, né?

Que tipo de coisa?

Coisa que não existe. Tô dando um tempo. Cansa contar a mesma história pelo menos trinta vezes.

Que história?

Ih, você continua inconveniente, não? Disso eu me lembro bem, você sempre perguntando, indo além, vendo coisas que não existem.

E você continua bonita, “a mais bonita da escola”... e metida, claro.

Viu como você tá sempre indo além? A gente não se vê há uns vinte, mais até, vinte e três anos, e você...

“Quem quer namorar a Anita põe o dedo aqui que já vai fechar...”. E os meninos todos correndo pra enfiar o dedo, da primeira a oitava série.

Não me lembro disso.

Não se lembra porque não era você a correr com o dedo esticado.

E você se lembra por quê? Ficava de olho, num cantinho, morrendo de inveja? Ou corria com os meninos?

E se eu corresse?

O que sempre disseram de você iria se confirmar.

O quê?

Que você gostava mesmo é das meninas, apesar daquele namorico com o Zé Meleca. Que nojo! Fala aí, o que foi aquele namoro com o Zé Meleca?

Não é da tua conta.

As perguntas não valem pra você, Tereza?

Fácil pra você falar, Anita. Só mulher bonita tem direito de arranjar namorado, né? As gordinhas dentuças quatro-olhos cabelo ruim, como é mesmo que falavam de mim, “a mãe da Tereza jogou o filho fora e criou a placenta”? Essas não podem namorar, né?

Não é isso...

Claro que é. Você sempre à vontade naquele shortinho de educação física, as pernas morenas compridas e lisinhas. Eu ficava me perguntando se você passava alguma maquiagem, se era algum tipo de pó mágico que deixava as pernas assim. Quem não parava pra te olhar?

Ô, Tereza...

Até hoje, olha aí seus pernão esticados nessa cadeira. Não precisa encolhê-las, não. São bonitas mesmo, todo mundo gosta de ver. E você gosta de mostrar, sempre gostou, mostre.

Ah, Tereza!

Sempre se movendo como uma gata, esses cachos soltos que nunca se descabelavam, negros como os de Iracema, era assim que aquele professor falava, né? Anita, a domadora de professores!

Por que isso, Tereza? Veio aqui pra me provocar? Passou anos esperando um encontro pra isso? Você não me assusta mais...

Uaaauuu! Eu te assustava?

Não. Me provocava, me irritava.

Você falou assustar.

E eu não posso errar?

Não foi erro. Eu te assustava, confessa.

O que você quer, Tereza?

Que você confesse.

Você não tinha nada a perder, Tereza. A placenta que a mãe criou podia jogar bola, suar, falar palavrão, discutir com os professores, namorar o Zé Meleca, ir às festas dos anos sessenta vestida de homem, dançar de qualquer jeito, ficar bêbada que ninguém falava nada, enquanto eu...

Ah, não, Anita, você não vai me convencer que era um martírio ser a encantadora de homens e mulheres, meninos e meninas, que é difícil carregar essas pernas, esses peitos, essa bunda, esse cabelo... saia desse papel.

Você acha que sabe alguma coisa sobre mim?

Além do que sempre vi nos teus olhos tristes?

Não tenho olhos tristes.

Já olhei pra eles mais do que você.

Chega, Tereza, vou voltar pra lá, contar mais algumas vezes que não, não casei, não tive filhos; sim, tenho alguns namorados, nada que dure; sim, trabalho com meu pai nas lojas; não, nunca saí daqui, apesar de reclamar do interior...é isso, Tereza? Quer ir comigo, ouvir os detalhes de uma vida besta?

Não preciso, Anita, continuo olhando nos teus olhos. Vai lá, conte tudo isso mais uma vez, e volte com o baseado. Eu te espero.

sábado, 16 de abril de 2016

Nota paulista

CPF na nota?

Ela apontou para os incensos sobre o balcão.

CPF na nota?

Ela mostrou duas notas de cinquenta reais.

CPF na nota?

Ela apontou para os incensos e mostrou as notas.

CPF na nota?

I don’t português.

Where are you from?, me intrometi.

Syria.

Oh, eu não sabia se sorria, conhecendo o motivo que tem espalhado os sírios pelo mundo nesses últimos anos, apesar da beleza e importância desse país, que sem dúvida valem um sorriso. Mas quem sabe esse motivo não era o daquela mulher que tentava comprar incensos e empurrava um carrinho de bebê com uma menina loirinha com um dos bracinhos quebrado.

How long have you been here?

Less than one month.

Ah, só podia ser o motivo. Eu não devia sorrir. Ou devia? Ela sorriu. Eu também. Enquanto isso a menina com o bracinho quebrado derrubava uma boneca no chão, que eu recolhi e devolvi.

Thank you, disse a mulher. E falou em árabe com a menininha, que sorriu para mim.


Good luck, eu disse para elas. Good luck to all of us, eu disse para mim mesma, enquanto tentava ouvir um pouco mais do árabe falado por aquela mulher que deixou a Síria há menos de um mês e tentava comprar incensos em São Paulo. 

domingo, 10 de abril de 2016

Júpiter e o dono da bola





Eu vi Júpiter, ele me contou, a coisa mais brilhante que já vi.  Olhei para ele – a coisa mais brilhante que já vi, apesar de não poder vê-los, são meus olhos olhando para ele – e pensei que nunca vi Júpiter, nunca nem mesmo consegui localizar a constelação do Cruzeiro do Sul, as Três Marias, às vezes demoro para localizar a lua. E só agora, olhando para ele, entendi: trago em mim um deus protetor que não me permite localizar Júpiter ou Marte ou uma estrela que forme um desenho com outras a nos indicar o sul ou o norte ou seja lá o que for. Vê-los me daria a certeza de que é isso mesmo: não somos um jogo de Lego, com as pecinhas previamente pensadas para ficarem encaixadas em perfeição, quiçá expostas para todo o sempre. Somos apenas bonecos de massinha de modelar feitos por uma criança que a qualquer momento pode enjoar da brincadeira e nos amassar com um só murro. Ou uma só pisada.






sexta-feira, 8 de abril de 2016

A biblioteca

Tantas páginas a serem lidas. Tantas páginas a serem escritas. Olho para o mundo como se ele fosse apenas uma biblioteca. Meu peito é uma barreira prestes a romper em lágrimas doces e salgadas. A panela de pressão apita, a criança chora na sala e a conta corrente está negativa. Devo ao banco, à criança que de mim nasceu, ao homem que está ali, a mim. Sobretudo devo a mim, mas o feijão vai queimar e a criança vai sufocar. Fecho o livro, rasgo a página sobre a qual não consigo juntar palavras, não de forma bonita, não de forma que a barreira se rompa porque talvez essa seja a única forma de dizer o indizível. Por que, afinal, essa procura, se o feijão precisa ser posto à mesa, com o arroz e o bife e a alface e o tomate, e nada será dito sobre isso? Se a fralda precisa ser trocada e ninguém vai dizer uma palavra? Nem sobre isso, nem sobre qualquer outra coisa. 



quinta-feira, 7 de abril de 2016

Labirintos

Seres extraterrestres invadem o meu estômago para trançá-lo. Trançá-lo até a exaustão, até sentir que vomitarei assim que atravessar a porta que me leva – de onde para onde? Atravesso, passo correndo pela porta ­– estreita ou larga – sem olhar para trás e assim que chego – onde? ­– não vomito. Que seres bestas, pousados dentro de mim numa noite fria de ar condicionado só para me fazerem correr de uma ponta a outra – ou corro em círculos? ­– em aflição. Enfim, cada qual com seu prazer. Um dia os vomitarei. Um por um, mas de uma só vez. 

terça-feira, 5 de abril de 2016

Ampulheta


Mais peso, menos peso, menos idade, mais idade, mais alegria, mais tristeza, menos dinheiro, mais dinheiro, mais horas de sono, menos horas de sono, mais desejos, mais sucessos, mais frustrações, mais ginástica, menos ginástica, mais quadrado, mais redondo, um triângulo?, mais barulho, mais silêncio, mais ruído, menos medo, menos coragem, mais coragem, cachorro, gato, criança, um canário, mais música, menos música, mais poesia, menos poesia, mais aqui, mais ali, mais mãe, mais filha, mais esposa, mais advogada, mais escritora, mais mediadora, mais produtora, sempre estudante, mais água, mais terra, menos ar, menos fogo, mais ódio, mais amor, mais carência, menos segurança, mais segurança, vamos vamos vamos!, mais pedras, mais buracos, mais planícies, menos verde, mais cinza, menos cinza, mais verde, sempre cinza, cinza cinza cinza, cinzas, mais ou menos, mais álcool, menos tabaco, mais tabaco, menos álcool, mais dor, menos dor, sempre dor, casa com quintal, casa sem quintal,  fogão a gás, fogão a lenha, com elevador, sem elevador, carro, ônibus, sempre meus pés, um amor, dois amores, três amores, outro triângulo?, sempre um amor, um vazio, sempre, vazio vazio vazio, volta, sem volta, volta, sem volta, alto, baixo, fundo, raso, uma lágrima, um litro, cem litros, mais crawl, menos costas, sempre peito, mais chá, mais café, mais whisky, mais vinho, mais eu, mais ele, mais eles, menos eu. Todos. Menos eu.