terça-feira, 30 de junho de 2015

Pedrolino

6505-10 Terminal Guarapiranga – Terminal Bandeira. Os dias ficaram ainda mais tediosos depois da implementação dos cartões. Seis horas olhando pessoas aproximando-os da leitora, nenhum bom dia ou boa tarde, pouco troco, quase nenhum dinheiro para contar, dinheiro assim um dia vai acabar, não vai, não?, o motorista nunca respondia, só fazia riscar os dias para a aposentadoria próxima e xingar os ciclistas, motoristas, pedestres e os motociclistas: que azar, pensou desde o primeiro dia de parceria com o condutor.

O ponto da Fundação Getúlio Vargas se aproximava e ele se empertigava todo; o motorista meneava a cabeça, ele fingia que não via e se preparava para a entrada dela, segundanista que ele acompanhava desde o primeiro dia de aula por causa do sorriso direcionado a ele, acompanhado de um boa tarde todas as tardes. O sorriso dela dando existência para alguém transparente na maior parte dos dias.

O perfume que ele não identificava (parece de nuvem, de flor branca, de chuva, não sei...), o esmalte claro e brilhante em dedinhos ágeis – o cartão de volta na carteira, a carteira de volta na mochila, a mochila de volta para as costas, o celular para fora da bolsa, a senha, duas ou três mensagens rápidas, os fones de ouvido de dentro da bolsa para as orelhas, a mecha de cabelo negro queimado de sol sobre a testa – até se acalmarem sobre o colo e começarem a tamborilar num ritmo que ele acompanhava com os próprios dedos, sem nunca descobrir de que tipo de música, afinal, ela gostava.

Cinco pontos e ela descia, às vezes absorta na música, os dedinhos agora tamborilando a coxa direita ou a coxa esquerda, coxas esguias e brancas que ele imaginava macias e quentes a um toque que deveria ser delicado, precedido de uma pequena reverência, suas mãos em coxas tão claras, coxa direita que os shorts ou a saia usados no verão mostravam abrigar uma tatuagem nunca inteiramente revelada: onde começava onde terminava? Um caule? Uma letra? Um tribal? O nome de um amor? Era preciso muito menos tecido ou medo para ver tanto mais. Quando ela descia assim, nem se lembrava de olhar para ele e se despedir com um sorriso acompanhado de um imperceptível movimento de cabeça, insuficiente para tirar aquela mecha de cabelo do lugar. Mas ele, sempre, ainda que ela não olhasse para trás, ainda que ele estivesse dando troco ou conferindo um cartão, ainda que estivesse com os braços para fora pedindo passagem para os carros, ainda que estivesse orientando um passageiro onde descer, se despedia dela com um sorriso de palhaço.

No terceiro dia consecutivo em que ela não subiu no 6505-10, ele fez contas nos dedos: não era dezembro nem janeiro nem fevereiro; nem julho; nenhum feriado para ser emendado; só uma das quartas-feiras daquele mês de agosto; e ela entrou no ônibus todos os dias da semana anterior, descendo na sexta como se fosse subir na segunda.

Na quarta-feira seguinte já eram seis dias de ausência. Muito cedo para pensar em desistência da faculdade e na morte. Razoável pensar em doença, nada grave. Nenhum crime noticiado que pudesse levá-lo a ela.

No décimo segundo dia, a doença grave tornou-se possível.

No vigésimo, a desistência da faculdade (foi ser cantora ou bailarina ou cuidar de flor).

Dois meses depois, talvez tivesse mudado de cidade. Ou de estado. Ou de país.

Em seis meses, a morte era uma opção.


Passado um ano – ele marcou no calendário aquela quarta-feira de agosto – seus dedos ainda tamborilavam uma música desconhecida ao passar no ponto da Fundação Getúlio Vargas. 

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