quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Baquetate

Catima, mãe? Catima não existe!

Senti minhas pernas amolecerem, como um desmaio que se anuncia, mas não chega. É sempre assim quando o medo me toca. Eu não teria sobrevivido às feras nas cavernas: minhas pernas me fariam cair em vez de correr. E agora me vejo sentada diante da minha mãe, com o passatempo preferido dela entre a gente, e não sei se é por culpa da medicação que ela, professora de língua portuguesa aposentada, escreve no tabuleiro uma palavra que não existe.

O prognóstico do médico, mais dois meses de vida, um pouco mais, um pouco menos, é a fera que me acossa, não em uma caverna, mas nesse apartamento onde eu e minhas irmãs nascemos e crescemos. E onde minha mãe provavelmente irá morrer. Onde ela chega, depois das sessões de quimioterapia, e nos convida a jogar palavras cruzadas. E agora essas seis letras me escancarando seus dentes pretos e fétidos. Mas foi essa mulher quem me ensinou a olhar debaixo da cama e puxar o rabo do monstro.

Então levanto os olhos do tabuleiro e procuro os olhos azuis da minha mãe, que já estavam me esperando. Abaixo deles, o mesmo sorriso que ela trazia para a sala, uma hora antes do jantar, com uma caixa de bombons para dividir com as filhas ainda crianças. Nunca uma palavra foi dita nesses momentos que ela escondia do meu pai, enquanto ele morou conosco. Ou quando meu pai nos colocava de castigo por uma hora no quarto fechado e dizia Helena, nada de fazer companhia para as meninas, entendeu? Dez minutos depois ela já estava no quarto, o mesmo sorriso, a nos colocar no colo durante cinquenta minutos silenciosos. O sorriso com que ela nos chamava para ir até a praia à noite, depois do banho tomado, Helena?, e com que segurava nossas mãos já não tão medrosas. Será que não aprendi nada?

Olhei para as minhas pedras: T – I – M – Ç – A – C – U

Olhei para minha mãe: o sorriso.

Olho para as minhas pedras novamente e aproveito o T de catima para escrever:

TUCAMI

O sorriso da minha mãe se expande. Ela relaxa as costas no espaldar da poltrona, afasta a manta dos joelhos, esfrega uma mão na outra e diz:


Agora é a minha vez, menina. 

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