quarta-feira, 3 de abril de 2013

O penúltimo capítulo


Se a senhora quiser se despedir, a hora é agora. E ela fixou o olhar nos lábios do médico à sua frente. A frase escorria como baba pelos cantos do bigode. O médico que há três anos trata do seu marido e que, a cada seis meses, reporta-lhe com detalhes a aniquilação do corpo humano. A mandíbula paralisou-se em catarse frente ao obstáculo agudo. Os lábios do médico, com a baba ainda escorrendo, num sorriso parado no meio do caminho, como se só depois de iniciá-lo ele se lembrasse de que num momento como esse ninguém deve sorrir, nem – ou, principalmente, por piedade.
Como nos despedimos de alguém com quem dividimos a cama e a solidão por vinte e sete anos e cinco meses?
A...ho...ra...é...a...go...ra.... A frase já escorria pelo chão, ela com a mandíbula catártica olhando para a gosma nojenta, o médico à espera de uma reação, aflito para tirar o celular do bolso e checar as horas, ainda tinha visitas naquela noite. Que horas são, doutor? Ele respirou aliviado e puxou o telefone. Oito e quarenta. A novela está começando, ela pensou, e fixou novamente o olhar no rosto do médico que não babava mais. E na UTI não tem televisão. Por que não colocam um aparelho, pequeno que seja, nesse lugar? Será possível que já passadas as bodas de prata ele vai me deixar bem no penúltimo capítulo da novela? Porque, veja bem, o penúltimo é mais importante do que o último. O penúltimo é decisivo. Nele as possibilidades ainda existem. Dá tempo de não entrar na igreja, reconhecer um filho, matar a mãe, conhecer um novo amor, ir atrás de um antigo amor, comprar uma passagem só de ida, roubar um banco, se trancar num mosteiro. No último, não. Para o último só sobra o desfecho do que se tornou inevitável.  
O médico ainda à sua frente, agora já respondendo mensagens e emails pelo celular, fez um gesto de quem pediria licença, não sem antes alertá-la. A visita acaba em vinte minutos.
Ela agradeceu. Muito obrigada, doutor...por tudo. E saiu, silenciosa, pelo corredor.

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