quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Primavera em São Paulo


Uma senhora. Ou: uma mulher com aparência de senhora: gorda, daquelas com braços e pernas que transbordam uma gordura mole e cheia de ranhuras; pés inchados que não cabem nos chinelos; cabelos ralos e grisalhos presos no que um dia foi um coque, algo que um dia foi cabelo. Sentou no meio-fio. A noite começava a cair sobre uma das maiores cidades do mundo, a cidade onde nessa manhã dois corpos foram encontrados dentro de um freezer largado de madrugada numa de suas principais avenidas. Corpos encontrados por moradores de rua. De dentro de uma sacola plástica a senhora tirou alguns gravetos. Não: muitos gravetos, havia outra sacola. Fez com eles um montinho. Sim, uma pequeninha montanha de gravetos construída na calçada por onde passavam centenas de pessoas apressadas para pegar o ônibus e o metrô. De uma sacola maior, de pano, tirou alguns tijolos e protegeu o montinho de gravetos com três paredes. Três pequenos muros protegendo a pequena montanha. Um homem quase chutou a construção na pressa de ultrapassar outro transeunte. A senhora riscou um fósforo e pôs fogo no montinho. Por cima do que agora era um fogareiro colocou uma panela. Uma panela que se equilibrava nesse pequeno fogão montado na calçada. Da sacola de pano tirou uma garrafa com água, que jogou dentro da panela. E depois alguns pedaços de sabonetes gastos. Com uma colher de pau começou a mexer a mistura. Fazia um calor insuportável nessa noite, nessa cidade, nessa calçada. E a mulher mexia a mistura. Mexia, mexia, mexia, um calor da porra mesmo. Mexia, mexia, mexia e a água foi ficando menos transparente, esbranquiçada, grossa. Mexia, mexia, mexia, três universitários quase derrubaram a cozinha armada na calçada. Mexia, mexia, mexia, o líquido foi ficando mais sólido, um branco azulado ou esverdeado. Mexia, mexia, mexia e a pasta começou a borbulhar. Ela tirou a panela do fogo, deixou-a de lado, apagou o fogo com os tijolos, olhou em volta, esticou as pernas, abanou-se com o encontrou de um jornal, ergueu o rosto para poder ventilar melhor no pescoço, guardou seus apetrechos de volta nas sacolas, mexeu mais uma vez a massa que cozinhou e tomou tudo. Num só gole. Fazia muito calor. Um calor da porra mesmo.

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