terça-feira, 17 de março de 2015

A visita

Mamãe pode estar morta. Ele nunca mais, desde os seus quatro anos de idade, havia se referido a ela como mamãe, mas foi esse pensamento que o invadiu naquela tarde modorrenta de domingo, com essas exatas palavras: mamãe pode estar morta.

O telefone tocava há dois dias. Ninguém. Nem no fixo nem no celular. Mamãe abandonada pelo marido, com dois filhos ainda diariamente de joelhos ralados chegando da rua e gritando mãe, tô com fome! Mamãe abandonada pelos vizinhos porque com mulher largada, sabe-se lá, melhor não falar. Mamãe abandonada pelos filhos, ele e o irmão mais velho, vida ocupada, sem mais tempo para ... mamãe.

Mamãe ocupando o vazio com seus cães, que só sabem dar amor, ela explicava quando, nas raras vezes em que a visitavam, reclamavam da sujeira do quintal e do cheiro da sala. Mamãe e seus pit bulls deitados no sofá, em frente à TV, dividindo os assombros diante da vida em tela plana. Na última visita, dois meses antes, nem bolo de fubá e café para os filhos. O dinheiro foi quase todo para a ração, ela tentou mentir. O mais velho levantou, precisava passar na padaria antes de voltar para casa com mulher esperando. O mais novo foi em seguida, um beijo murcho na testa da mãe.

Mas o telefone ela ainda atendia, nem que fosse só para tudo bem e fique com Deus. Agora dois dias de silêncio. Ele foi, sem avisar o irmão, sem avisar a namorada, sem avisar o colega de pensão. Mamãe pode estar morta, era só nisso que ele pensava quando tocou a campainha da casa da mãe, depois de uma hora de trajeto num ônibus surpreendentemente vazio, tarde de domingo, uma chuva ameaçando, o cobrador esperando o jogo começar no rádio de pilha, lembrou-se do pai sentado no quintal, também à espera do início da partida, o quintal que hoje fedia a mijo, merda e carência.

Tocou a campainha e nada além dos latidos. Nada dos passos pesados da mãe, arrastando os chinelos sob as pernas varizentas. Nada da sua voz fumante há trinta anos gritando quem é? Mamãe abandonada pelos vizinhos, ninguém a viu.

Lembrou-se do muro do quintal, as bolas que caíam para dentro e para fora. Ele e o irmão ralando os joelhos, o pai ainda sonhando com um craque, alguns vizinhos ameaçando furar a bola, outros sorrindo, a mãe no fogão, nenhum cachorro na casa, nem gato, nem passarinho, nem coelhos e hamsters, eles ainda se bastavam.


Pulou o muro. Não teve tempo de contar quantos foram os cachorros que o mataram assim que caiu no chão do quintal, a pergunta mamãe, mamãe? incompleta no meio da garganta estraçalhada. 

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