quarta-feira, 11 de julho de 2012

Fantasmas


Resolveu contar carneirinhos depois de três horas deitada na cama fingindo que dormia. Os primeiros eram brancos e felpados e ela teve a impressão que sorriam, até que o trigésimo sexto chegou com pelos sujos e falhados, sem força para saltar o obstáculo que sua mente havia criado. Outros como este surgiram e se juntaram para acossá-la com raiva e sangue nos olhos. Ela agarrou o celular que dormia ao seu lado e foi para o banheiro fazer xixi.

Com frio nas pernas pensou em acessar o Facebook, mas pressentiu que ver tanta gente feliz às duas da manhã não lhe faria bem. Resolveu brincar de estourar balões, subiu a calça do pijama e jogou três partidas, até achar que a garganta estava seca. Foi para a cozinha beber um pouco de água – o suficiente para não ter que fazer xixi novamente nas próximas cinco horas.

A geladeira com alguns potes de iogurte e caixas de sucos sem conservantes que duram seis meses. O fogão quase nunca usado, apesar dos protestos do marido. Sobre a mesa onde fazem refeições silenciosas, o resto da pizza pedida para o jantar e um pacote de pão de forma vencido. Deixou um pedaço de chocolate derreter na boca e mastigou um pedaço de pão que ainda não estava verde. Pensou em fazer um chá, apesar de achar que seria mais teatral tomar um vinho. Foi procurar uma garrafa.

Na sala, olhou para uma pilha de revistas de decoração que não a inspiravam. Os sofás doados pela sogra não combinavam com o tapete que comprou sozinha durante a liquidação de uma loja chique. Pensou em jogar as almofadas pela janela, mas deixou-as onde estavam - entrançadas com um cobertor sobre o sofá. Na parede, um quadro pintado pelo tio-avô do seu marido que nada dizia a ela, a não ser “sou um quadro pintado pelo tio-avô do seu marido”. Ligou a TV e em dez segundos viu o que passava em mais de cem canais. Nenhuma comédia romântica que a fizesse ter vontade de se apaixonar novamente. Parou num programa que vendia joias e viu as contas para pagar – vincendas e vencidas, sobre a pequena mesa colocada sem pretensão no hall.  Pensou em arrumar uma mala e fugir para Roraima. Lembrou do primeiro namorado que estranhamente não está no Facebook. Desligou a TV, folheou uma revista de decoração de casas de praia, que nunca teve, e decidiu voltar para o quarto.

No corredor, o quarto dos filhos que não nasceram transformado num escritório com outra TV e um sofá-cama para a sogra. Sentiu um aperto de saudades da irmã, com quem não fala há quase três anos. Achou que seria só por uma semana. Num porta-retrato, a fotografia da mãe antes da doença que a deixou órfã. Sentiu vontade de comer brigadeiro na colher, sentou no sofá-cama e rezou o Pai Nosso até adormecer.

Às seis da manhã, no quarto transformado em escritório sem cortinas, despertou. Tomou um banho completo, que inclui cabelos lavados, vestiu uma roupa escolhida casualmente, pensou mais na hora de colocar os sapatos, bebeu uma xícara do café que ela mesma fez, deu um beijo no marido que acordava e foi fazer o que tinha que fazer.

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