segunda-feira, 30 de julho de 2012

O piado


Piu.

...

Piu.

...

Piu...piu.

Ela demorou a entender que estava na sua cama, no seu quarto, ouvindo um piado às duas da manhã. Acendeu a luz do abajur e viu o lado que até dois meses atrás era o dele na cama. Ainda não havia se habituado ao vazio todo para ela. O que ele estaria fazendo naquele exato momento era o primeiro pensamento que a invadia ao acordar, a qualquer hora do dia ou da noite.  Que culpa tinha ele, afinal, se as pessoas não escolhem se apaixonar?

Piu.

Tentou tirar qualquer ideia gritante da cabeça.

Piu.

Sim, ela ouvia. Seria uma brincadeira das crianças ou um daqueles sonhos que sabemos ser sonho, mas do qual não conseguimos sair? Arrastou-se até o quarto dos filhos. Os dois a cara dele, para ajudá-la a não esquecê-lo. Que culpa tinham eles, afinal, se ninguém escolhe o próprio rosto?

Agachada no escuro do quarto das crianças apurou os ouvidos.

...

Piu.

O som não vinha de lá. Foi até a sala.

...

Piu.

Até a cozinha.

...

PIU.

Atrás da geladeira, encolhidinho e com os olhinhos arregalados, o mais belo dos pintinhos amarelinhos, como uma daquelas ilustrações de livros infantis. Ela sorriu e esticou a mão, tentando emitir um som que ele entendesse como um convite amigável. E ela achou que ele entendeu quando viu seu corpinho relaxar e o bico abrir um pouquinho, quase num sorriso. Ela esticou um pouco mais o braço e o pintinho veio caminhando cambaleante, no perfeito passo de pintinho, na sua direção até subir na palma da sua mão. Como era macio e amável. Ela o levou para perto do coração e ele abaixou a cabeça para receber mais um pouco de cafuné, como numa fusão há muito esperada. Quase destinada.

Pensou em acordar as crianças, mas o relógio na parede da cozinha mostrava que não eram nem três da manhã. Há quantos anos elas pediam um bichinho de estimação? Ela não desgostava dos bichos, não era isso. Só nunca lhes permitiu ter um animal em casa porque não aguentaria mais um ser vivo sob sua responsabilidade. Ela já tinha mais do que o suficiente para esquecer que ela também tinha necessidades de vários níveis. Mas agora que não precisava mais ser esposa, aquele pintinho poderia ser bem-vindo. Havia um espaço mesmo sobrando na casa. Mas poderia esperar um pouco para chamar os filhos. Eram raras as noites em que eles não acordavam perguntando pelo pai, que aproveitassem um pouco o sono tranquilo.

Enquanto isso, pegou uma caixa de sapato e forrou com um pedaço de flanela para que ele ficasse bem quentinho. Ofereceu um pouco de água num pires, que ele bebeu agradecido. Prometeu comprar uma ração especial logo que os comerciantes abrissem as portas.

Piu.

Ele se encolheu num dos cantos da caixa, envolveu-se nas próprias asinhas penugentas e fechou os olhinhos. Se ela coubesse, deitaria ali com ele, um protegendo o outro contra a frieza dos azulejos. Voltou para sua cama, hesitante, mas voltou. Ele ficaria bem. Logo as crianças acordariam e a casa ganharia uma atmosfera aconchegante mais uma vez. Adormeceu abraçada à possibilidade de sentir-se alegre de novo. Não acreditava mais na felicidade, mas na alegria ainda sim.

Acordou com as crianças em cima dela na cama e foi ejetada pela ansiedade de mostra-lhes o novo bichinho de estimação. Correram todos para a cozinha enquanto a mãe dizia que era amarelinho e fofinho e bonzinho e gordinho e amável e não, não sei como apareceu, mas é nosso, é nosso, só nosso; mas na cozinha havia apenas um caixa de sapato forrada com flanela vazia.

Um comentário: