Piu.
...
Piu.
...
Piu...piu.
Ela demorou a entender que estava
na sua cama, no seu quarto, ouvindo um piado às duas da manhã. Acendeu a luz do
abajur e viu o lado que até dois meses atrás era o dele na cama. Ainda não
havia se habituado ao vazio todo para ela. O que ele estaria fazendo naquele
exato momento era o primeiro pensamento que a invadia ao acordar, a qualquer
hora do dia ou da noite. Que culpa tinha
ele, afinal, se as pessoas não escolhem se apaixonar?
Piu.
Tentou tirar qualquer ideia gritante
da cabeça.
Piu.
Sim, ela ouvia. Seria uma
brincadeira das crianças ou um daqueles sonhos que sabemos ser sonho, mas do
qual não conseguimos sair? Arrastou-se até o quarto dos filhos. Os dois a cara
dele, para ajudá-la a não esquecê-lo. Que culpa tinham eles, afinal, se ninguém
escolhe o próprio rosto?
Agachada no escuro do quarto das
crianças apurou os ouvidos.
...
Piu.
O som não vinha de lá. Foi até a
sala.
...
Piu.
Até a cozinha.
...
PIU.
Atrás da geladeira, encolhidinho
e com os olhinhos arregalados, o mais belo dos pintinhos amarelinhos, como uma
daquelas ilustrações de livros infantis. Ela sorriu e esticou a mão, tentando emitir
um som que ele entendesse como um convite amigável. E ela achou que ele
entendeu quando viu seu corpinho relaxar e o bico abrir um pouquinho, quase num
sorriso. Ela esticou um pouco mais o braço e o pintinho veio caminhando
cambaleante, no perfeito passo de pintinho, na sua direção até subir na palma
da sua mão. Como era macio e amável. Ela o levou para perto do coração e ele
abaixou a cabeça para receber mais um pouco de cafuné, como numa fusão há muito
esperada. Quase destinada.
Pensou em acordar as crianças,
mas o relógio na parede da cozinha mostrava que não eram nem três da manhã. Há
quantos anos elas pediam um bichinho de estimação? Ela não desgostava dos
bichos, não era isso. Só nunca lhes permitiu ter um animal em casa porque não
aguentaria mais um ser vivo sob sua responsabilidade. Ela já tinha mais do que
o suficiente para esquecer que ela também tinha necessidades de vários níveis.
Mas agora que não precisava mais ser esposa, aquele pintinho poderia ser
bem-vindo. Havia um espaço mesmo sobrando na casa. Mas poderia esperar um pouco
para chamar os filhos. Eram raras as noites em que eles não acordavam perguntando
pelo pai, que aproveitassem um pouco o sono tranquilo.
Enquanto isso, pegou uma caixa de
sapato e forrou com um pedaço de flanela para que ele ficasse bem quentinho. Ofereceu
um pouco de água num pires, que ele bebeu agradecido. Prometeu comprar uma ração
especial logo que os comerciantes abrissem as portas.
Piu.
Ele se encolheu num dos cantos da
caixa, envolveu-se nas próprias asinhas penugentas e fechou os olhinhos. Se ela
coubesse, deitaria ali com ele, um protegendo o outro contra a frieza dos
azulejos. Voltou para sua cama, hesitante, mas voltou. Ele ficaria bem. Logo as
crianças acordariam e a casa ganharia uma atmosfera aconchegante mais uma vez.
Adormeceu abraçada à possibilidade de sentir-se alegre de novo. Não acreditava
mais na felicidade, mas na alegria ainda sim.
Acordou com as crianças em cima
dela na cama e foi ejetada pela ansiedade de mostra-lhes o novo bichinho de
estimação. Correram todos para a cozinha enquanto a mãe dizia que era amarelinho
e fofinho e bonzinho e gordinho e amável e não, não sei como apareceu, mas é
nosso, é nosso, só nosso; mas na cozinha havia apenas um caixa de sapato
forrada com flanela vazia.
nossa lu.... ele voou....
ResponderExcluir