O que se é só se pode
encontrar no que não é dito, nas culpas deixadas dentro, nos castigos que se
vão escolhendo.
(Nuno Camarneiro, em Debaixo de Algum Céu)
Mamãe, faz meu
tetê, mamãe, também quero tetê, mamãe, já fez meu tetê?, mamãe, quero fazer
xixi no vaso, mamãe, cadê as minhas petas?, mamãe, fiz xixi no chão, mamãe, e o
meu tetê?, mamãe, quero tetê já!, mamãe, ele pegou as minhas petas, mamãe, ele
me empurrou, mamãe, ele me bateu primeiro, mamãe...
Nesse momento
ela se sente presa numa teia de aranha estridente, olha para a porta do
elevador, para as janelas enredadas, corre para o banheiro e tranca a porta. O
grito na iminência de escapar pelos vãos dos dentes, por isso o esforço para manter
a boca fechada.
Eu me lembro da
minha mãe assim, como Luciana, trancada no banheiro, pedindo um momento de paz
para mim e minha irmã dois anos mais nova. Eu me lembro do dia em que ela
demorou para abrir a porta, eu e minha irmã nos enfrentando por causa de uma
boneca, uma puxando o cabelo da outra, ela me jogando contra a parede, eu
revidando e empurrando-a contra a escada, ela caindo, eu gritando, ela
chorando, minha mãe abrindo a porta, minha irmã gritando, eu chorando, minha
mãe berrando, minha irmã lá embaixo, eu correndo em círculos, minha irmã gemendo,
minha mãe descendo, eu atrás, minha irmã indo para um hospital com alguma coisa
quebrada que não consertou mais.
[...]
Eu, minha mãe e
meu pai também presos numa teia, só que silenciosa. E venenosa. Uma célula
assassinada a cada minuto.
Minha irmã num
caixão e minha mãe conseguiu me dizer não foi sua culpa, com um abraço duro. O
abraço do meu pai foi macio, porém mudo.
[...]
Vivi anos sem palavras.
Era como uma tartaruga presa num aquário sem água. Éramos. Ainda sou, agora
trancada numa UTI infantil em busca de cura e sorrisos – oi, tia Juliana!
Obrigada, Doutora Juliana!; cada fracasso um novo tombo na escada.
[...]
Sua irmã teria
orgulho de você, minha mãe conseguiu me dizer uma vez, ao me ver chegando de um
plantão de setenta e duas horas. Não, ela não teria. Se eu não a tivesse
empurrado, ela não teria uma irmã médica, mas pintora. Ao menos uma tentativa
de artista plástica.
É insuportável
chegar ao extremo do silêncio, meus quadros ficam pela metade, como o corpo da
minha mãe. Pinceladas inacabadas, como o sorriso do meu pai quando foi embora
de casa. Ele, que ainda tenta me ver todo Natal: não vai dar, pai. É nessa
época que conheço o mundo fora do aquário. Passaportes carimbados e passagens
sem acompanhantes.
[...]
Não consegui ter
filhos. Há muito silêncio dentro de mim. Não o silêncio que minha mãe procurava
naquela tarde. Não o silêncio que Luciana procura trancada no banheiro, mas o
outro:
[...]
aquele que a
apavora.
Aquele em que
Luciana pensa quando os meninos finalmente silenciaram, que a faz sair correndo
do banheiro com o coração paralisado por uma mente materna cruelmente
imaginativa – uma criança embaixo de uma estante, uma rede de proteção que não
funciona e um filho despedaçado no ar - aquele que minha mãe sentiu e que
Luciana julga ser incompatível com o ato de respirar. Mas minha mãe respira.
Tantas mães respiram. Eu respiro.
Luciana podia
ter aproveitado mais a quietude no banheiro, até um banho com água bem quente
seria possível, os meninos apenas tinham encontrado o programa favorito na tevê,
sentados lado a lado como dois amigos, incapazes de entender a mãe parada na
sala, com o pavor nos olhos por causa de um silêncio que ela mesma havia pedido.
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