quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

O dia em que meus pés fugiram de mim


Ouvi passos apressados e com a pouca luz que entrava no quarto àquela hora da manhã vi meus dois pés fugindo pela porta.

- Onde vocês pensam que vão?

- Embora, eles responderam sem me olhar.

- Vocês são MEUS pés, gritei numa tentativa fracassada de trazê-los de volta. Podiam ser rápidos mesmo sem o comando da minha cabeça.

Quis alcançá-los, mas não consegui me equilibrar sobre os tornozelos. Fiquei sentada na cama, olhando para aqueles dois caules ceifados. Como usarei os meus sapatos? E a tornozeleira de ouro que comprei na semana passada? E aquele kanji que eu sonhava tatuar no peito do pé direito? Quanto tempo ficarei aqui esperando?

O esmalte nas mãos agora não combinaria mais com o dos pés. Talvez meu marido achasse bom: não precisaria mais retorcer o nariz e a boca ao ver minhas unhas vermelhas e nem seria mais importunado para massageá-los antes de dormir.

Seria esse o motivo da fuga?

Passavam o dia apertados dentro de um salto quinze, com os dedos uns em cima dos outros, mas a dor era minha. O calo nos ossos sesamóides do pé esquerdo já não cabia nem mesmo numa sapatilha macia, mas eu insistia em escondê-lo no salto, não sem antes execrar sua existência. Cheguei até mesmo a lixá-lo com uma língua de pirarucu seca (conselho de um taxista), o que não me permitiu colocar qualquer sapato por uns três dias. Odiei-o ainda mais, parasita intruso indesejado.

À noite, já na cama, eu pedia uma massagem, rápida que fosse, mas diante do continuado enfado do meu marido, eu desisti. Pedi muito, pedi pouco, até que não pedi mais. Não tenho tamanho suficiente para enfrentar o egoísmo.  Nem paciência para lidar com pés que insistem em não aceitar sua função no corpo humano.

Agora meus pés fugiram. Ouvi a porta bater e umas risadas escancaradas na minha janela. Parece até que escutei um deles me chamando de otária, mas devo ter entendido errado. Ainda que eu conseguisse ficar em pé, não olharia pela janela para ver qual rumo tomaram. Que se percam! Que aprendam sozinhos. Têm a ilusão de que podem viver sós, mas depois de dois ou três quarteirões irão perceber que sem mim são apenas dois pés perdidos no meio de corpos inteiros. O deslumbramento da liberdade dura pouco. Sentirão falta do balanço dos meus quadris, da firmeza das minhas pernas, da retidão da minha coluna, da direção dos meus neurônios.

Pés bobos.

Enquanto isso eu espero com o lençol sobre as pernas. Em poucas horas poderei dar a eles a minha benevolência. Enquanto isso eu durmo um pouco mais e sonho com meus pés subservientes. Quando criança me equilibrava nos saltos da mamãe com meus pezinhos ainda sem calos. As primeiras dores vieram com a sapatilha de ponta, que também trouxeram os primeiros aplausos. Sempre achei que fossem para mim, mas eram meus pés que atravessavam o palco em passos miúdos, ligeiros e graciosos.

Em pouco tempo ouvirei o som do perdão ao invés de risadas. Enquanto isso eu descanso. Os pés não me deixavam parar. Até durante o sono se agitavam em sustos. Se as quatro patas do Napoleão não me fossem ofensivas nesse momento, eu o chamaria para um cafuné, mas não suportarei o barulhinho que fazem no assoalho como sapatos de salto. Não posso pensar em centopéias.

Enquanto não penso, eu espero.

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