Ouvi passos apressados e com a pouca
luz que entrava no quarto àquela hora da manhã vi meus dois pés fugindo pela
porta.
- Onde vocês pensam que vão?
- Embora, eles responderam sem me
olhar.
- Vocês são MEUS pés, gritei numa tentativa fracassada de trazê-los de volta. Podiam ser rápidos mesmo sem o comando da minha cabeça.
Quis alcançá-los, mas não consegui me
equilibrar sobre os tornozelos. Fiquei sentada na cama, olhando para aqueles
dois caules ceifados. Como usarei os meus sapatos? E a tornozeleira de ouro que
comprei na semana passada? E aquele kanji que eu sonhava tatuar no peito do pé
direito? Quanto tempo ficarei aqui esperando?
O esmalte nas mãos agora não
combinaria mais com o dos pés. Talvez meu marido achasse bom: não precisaria
mais retorcer o nariz e a boca ao ver minhas unhas vermelhas e nem seria mais
importunado para massageá-los antes de dormir.
Seria esse o motivo da fuga?
Passavam o dia apertados dentro de um
salto quinze, com os dedos uns em cima dos outros, mas a dor era minha. O calo
nos ossos sesamóides do pé esquerdo já não cabia nem mesmo numa sapatilha
macia, mas eu insistia em escondê-lo no salto, não sem antes execrar sua
existência. Cheguei até mesmo a lixá-lo com uma língua de pirarucu seca
(conselho de um taxista), o que não me permitiu colocar qualquer sapato por uns
três dias. Odiei-o ainda mais, parasita intruso indesejado.
À noite, já na cama, eu pedia uma
massagem, rápida que fosse, mas diante do continuado enfado do meu marido, eu
desisti. Pedi muito, pedi pouco, até que não pedi mais. Não tenho tamanho
suficiente para enfrentar o egoísmo. Nem
paciência para lidar com pés que insistem em não aceitar sua função no corpo
humano.
Agora meus pés fugiram. Ouvi a porta
bater e umas risadas escancaradas na minha janela. Parece até que escutei um
deles me chamando de otária, mas devo ter entendido errado. Ainda que eu
conseguisse ficar em pé, não olharia pela janela para ver qual rumo tomaram.
Que se percam! Que aprendam sozinhos. Têm a ilusão de que podem viver sós, mas
depois de dois ou três quarteirões irão perceber que sem mim são apenas dois
pés perdidos no meio de corpos inteiros. O deslumbramento da liberdade dura
pouco. Sentirão falta do balanço dos meus quadris, da firmeza das minhas
pernas, da retidão da minha coluna, da direção dos meus neurônios.
Pés bobos.
Enquanto isso eu espero com o lençol
sobre as pernas. Em poucas horas poderei dar a eles a minha benevolência. Enquanto
isso eu durmo um pouco mais e sonho com meus pés subservientes. Quando criança
me equilibrava nos saltos da mamãe com meus pezinhos ainda sem calos. As
primeiras dores vieram com a sapatilha de ponta, que também trouxeram os
primeiros aplausos. Sempre achei que fossem para mim, mas eram meus pés que
atravessavam o palco em passos miúdos, ligeiros e graciosos.
Em pouco tempo ouvirei o som do
perdão ao invés de risadas. Enquanto isso eu descanso. Os pés não me deixavam
parar. Até durante o sono se agitavam em sustos. Se as quatro patas do Napoleão
não me fossem ofensivas nesse momento, eu o chamaria para um cafuné, mas não
suportarei o barulhinho que fazem no assoalho como sapatos de salto. Não posso
pensar em centopéias.
Enquanto não penso, eu espero.
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