sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Espelho

Não tem nem onde cair morto. E daí se um corpo morto não tem onde cair? Pobreza mesmo, miséria, desespero, é não ter onde cagar em vida. Como a mulher no outro lado da rua, costas na parede de um prédio no centro da cidade, pés descalços, pernas esticadas e abertas, calça arriada até os joelhos e a merda escorrendo líquida e marrom-amarelada pela parede até o chão, onde um cachorro a espera. Enquanto caga, ri com olhos desgovernados. E eu aqui, esperando o sinal verde para atravessar a rua, pensando se alongo meu caminho para o trabalho e desvio da mulher. O sinal ainda vermelho para mim, suspiro sem tirar os olhos dela,  mas a luz amarela indica que meu tempo se esgota, o semáforo me ignora, para os carros e o sinal verde - um homenzinho com o corpo inclinado para a frente me dizendo vá - acende para mim. Decido não ir, esperar que ela desapareça para que eu possa passar, mas o homenzinho começa a piscar: corra. Não vou, homenzinho verde, olha a mulher ainda ali; não vou, homenzinho verde, a mulher caga na rua. Fixo meus olhos nela e feito um urubu faminto atravesso a rua e tomo o caminho mais curto.


Agora na mesma calçada. Diminuo a velocidade e viro o rosto para ela. Só eu. Os transeuntes que desviavam dela agora desviam também de mim. Ela não me vê, não vê ninguém; eu a vejo, vejo a merda doente. É uma cidade de pessoas transparentes e prédios espelhados. O cachorro embaixo, enrolado a seus pés, os olhos levantados. A merda num jato – o último –, ela ri aliviada. Prendo a respiração, mas é tarde. Expiro o ar, tento tirar tudo o que há dessa merda de dentro de mim, mas virou pedra e não sai fácil.  Balanço as mãos, enrosco os dedos uns nos outros, dou batidinhas com os pés na calçada, esfrego o nariz, procuro o cheiro do creme de amêndoas nas minhas mãos – perdeu-se. O que entrou pelas minhas narinas derrete meus esfíncteres. A mulher não caga mais, mas continua encostada na parede, não consegue levantar a calça, o cachorro se levanta, olha para chamá-la, a mulher não vê o cachorro, não sabe onde está e que cagou e que cagou doente na rua e que precisa levantar a calça e essa merda entupiu o meu útero. Nunca mais piso nessa calçada. Nunca mais me preocupo com onde cairei morta. Só preciso de um banheiro. A mulher consegue levantar a calça, não completamente, mas o suficiente para esconder a calcinha – por que uma pessoa que não tem onde cagar em vida usa calcinha? –, dá uns passos com o corpo ainda escorado na parede, quatro ou cinco, em seguida desencosta, cambaleia, mas logo ganha segurança e sai pela rua, o cachorro atrás, a merda na calçada. Uma pomba roliça se aproxima e bate as asas em desespero.

 E eu, ainda, aqui.

2 comentários:

  1. Ui...texto pesado hein?! É verídico ou inspirado em alguma coisa para fazer uma comparação com as mazelas que encontramos por aí?
    Bj e fk c Deus.
    Nana
    http://procurandoamigosvirtuais.blogspot.com.br/

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